22
Jan 16

À LUZ DOS VEGETAIS

Auvers-sur-Oise, 1890

 

                  À luz

Dos vegetais

As cores fervem

Na paleta

 

Uma rajada de tinta

Corta súbito

A fulva

                  paisagem

Entre

                  corvos

Trigais

                  e sombras

Para espanto

Das esferas

 

Enquanto a orelha

Sangra de nudez

A alma 

                  se banha

No fogo

Das papoulas!

 

Contador Borges,

in Claudio Daniel e Frederico Barbosa,

 Na Virada do Século --

Poesia de Invenção no Brasil (2002)

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13
Dez 15

OLHANDO O MAR

Sentados na varanda olhando o mar

não sei ao certo o que pensam ou recordam

se um filho morto ou a viagem nunca feita

um verão há muito um só verão não mais.

Não sei sequer se esperam qualquer coisa

ou simplesmente olham o mar

sentados na varanda ao fim da tarde.

Dois traços sobre um azul de Turner

um outro traço; a sugestão de um barco

aquele em que navegam ao fim dsa tarde

quando pego na caneta e devagar começo: 

«Sentados na varanda olhando o mar»

 

5-4-2003

 

Manuel Alegre, Doze Naus (2007)

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28
Fev 14

RETRATO DE PABLO, VELHO

da sombra seu rosto se lança

um peixe

uma lua africana

boiando à superfície gasta e gris

a calva não dava um aviso

dos olhos vivos

de água, vivos

que engendram antes de ver

a testa de touro tem brio

empurra um nariz repartido:

uma face enfrenta,

a outra subtrai

o resto são rugas e ricto

papiro

e o som de cascos ancestrais

 

Claudia Roquette-Pinto,

Na Virada do Século -- Poesia de Invenção no Brasil

(edição: Claudio Daniel e Frederico Barbosa)

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25
Jul 13

UM DESENHO DE JÚLIO

     São Pequenos para nós os jardins desta pequena cidade, com suas ruas estreitas, sua igrejinha envergonhada, e a janela em que me debruço todas as tardes à tua espera. Por isso, às vezes, o amor é tão difícil para nós.

     Mas quando passas devagar à minha porta, a brisa e o sol ganham poderes. E com a flor que dos dedos te nasce pela tarde, sobes então por dentro de mim -- e no ar ficas suspensa à minha espera.

 

     E ninguém sabe, ninguém vê -- é a nossa hora.

 

10/8/2000

 

João Pedro Mésseder,

Série Poeta -- Homenagem a Júlio / Saul Dias

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01
Abr 13

DESENHOS DA SÉRIE "POETA" (JÚLIO)

Vais pela estrada fora:

os teus passos de vento

percorrem florestas e cidades

como se cada hora,

cada momento,

te desse um novo rosto sem idade.

 

Vais pela estrada sem fim

e o teu olhar tem asas;

transformas-te em palhaço, em arlequim,

e atravessas mil ruas com mil casas

onde há sempre um segredo,

a música do mundo que se entrega

à tua fantasia.

Vá lá, não tenhas medo:

cada palavra cega

é a luz do teu dia.

 

Prossegue o teu caminho:

talvez encontres uma rapariga

que te veja sozinho

e logo te persiga

por essa estrada de quimeras.

Nunca desistas -- mesmo que procures

sem saber onde um sonho antigo,

os milagres que esperas

algures

virão ter contigo.

 

Fernando Pinto do Amaral,

Série Poeta -- Homenagem a Júlio / Saul Dias

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27
Set 12

AGUARELAS DE JÚLIO

De súbito, o papel,

de súbito, o pincel

transformados

em arco-íris,

em dicionários

de cor e mel.

 

Albano Martins

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28
Fev 12

MOTHERWELL (ELEGY FOT THE SPANISH REPUBLIC 108)

Carvão incandescente

e mineiros de um frio negro, 

vítimas da febre geral

e da privação de proteínas

 

-- um quarto onde cheira a cebola,

um gesto que se desconhece,

a partilha do único ficando azeda.

 

Foi uma lama que a geada inteiriçou,

os animais de carga que sobreviveram,

pendurada na gentileza

 

do seu corpo a roupa

interior de um homem destruído.

 

José Alberto Oliveira

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30
Dez 11

LOURDES CASTRO, RUA DA OLARIA

O pardal do campo descobre muitos lugares para uma casa

a poucos metros de mim

mundos sobrepostos transitam, preenchem o silêncio

e para o ânimo deles

quem não se levantaria cedo?

 

A minha arte é uma espécie de pacto:

não distingo as áreas selvagens das cultivadas

e elas não distinguem a minha sombra

da minha luz

 

José Tolentino Mendonça

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09
Dez 11

RETRATO DE ANTERO DE QUENTAL POR COLUMBANO (1889)

Camões póstumo de outra crise
Agonia do mesmo império   máscara de fim
Génio inconsiderado   santo impiedoso
Inconsolado e tenebroso   órfão da ideia
Da vida viúvo.

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28
Ago 11

l'homme au verre de vin

numa sala do louvre dedicada à
pintura espanhola há um quadro
atribuído à escola portuguesa
de quatrocentos. é o

homem do copo de vinho, ou, dir-se-ia,
do copo de solidão; e é possível
que seja flamengo e triste. mas tomemos
a origem indicada como boa

para esse homem que vai entrar na noite,
gravemente na noite, como numa
parda natureza. eu nunca pude
obter um slide dessa imagem,

um bilhete postal, ou quaisquer dados
para situar aquela estranha placidez
de quem vai encontrar no vinho uma verdades, de
alguém que vou visitar de vez em quando,

para beber um copo em companhia.
é possível que fosse na flandres
algum feitor discreto e rico ou que em lisboa fosse
o português cultivado, melancólico,

segurando uma alcachofra minuciosa
que o pintor depois terá mudado
para tornar mais intenso o sentimento
ou mais real a sua digna sede.

Vasco Graça Moura
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