22
Set 08

TEMPO MORTO

Jogávamos pueris jogos de sexo, Xila,
corríamos entre girassóis,
morávamos numa cabana oculta na barreira.

Na lembrança, um cão malhado ladra
entre os arbustos.

Éramos tão crianças!, a vida nem chegava
a ser mistério
e não havia problemas de pão a resolver...
Apesar disso tu eras a mulher,
tu eras a Amante (mais subtil
e experiente de quantas tenho conhecido,
porque eras o grande livro da Inocência).
Eu era o teu herói enamorado,
tu, a minha Rainha, Senhora do talismã.
Eu era o Tarzan dos Macacos,
tu, Jane morena.
Havia a inveja de Carlos e o ciúme de Sofia,
mas isso tornava-nos maiores ainda.
Amávamos na lonjura das tardes,
enquanto Foxie dormitava a um canto da cabana.
Sobre folhas verdes de acácia
tu não eras segredo
e, em mim, não morava o mistério.
Eras um duende de tranças pretas e olhos verdes,
eu era um potro selvagem.
Éramos sexo, lábios, mãos, epidermes
sem impureza.
Partiste ao anoitecer num navio amarelo,
levando juras eternas.

Quando voltaste
tinhas crescido e o teu corpo
esboçava outras formas.
Tomaras meneios senhoris,
falavas em pecado e em criancices reprováveis
com ar judicioso.
Eras a mentira, Xila!
A muralha do Impuro interpusera-se
entre mim e ti.

Eu,
fiquei na vida de calção.
E, certa manhã sem sol,
Foxie morreu atropelado.

A minha infância é um cão malhado.
Chama-se Foxie e ladra aos passantes.
Andou por aí
solto nos matos,
dormiu nos bancos ao relento,
olhou as estrelas, sem mistério
e sem as compreender.
Seu olhar langue e sem mágoa
aceitou as carícias e os pontapés
que lhe quiseram dar.
Sabia os recantos da rua
e os segredos do baldio defronte.

Conheceu noites de cio
e dias de vagabundagem.

Foi inconsequente
e -- como já se disse
-- morreu atropelado
numa escura manhã sem data.

Rui Knopfli
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04
Set 08

DÁDIVAS PARA...

CHARLIE CHAPLIN -- A janela do Convento de Cristo de Tomar com a colagem que lhe fez Nicolas Calas em 1942. Sob a janela, uma cama em osso de cavalo provida de telescópio e copo de sangue.
MARILYN MONROE - Um navio de guerra adaptado a ferro de engomar.
FRED ASTAIRE -- Uma dúzia de lagartos muito frescos.
BUGS BUNNY -- Uma prova de corta-mato no primeiro andar do Art Institute of Chicago.
BESSIE SMITH -- O quadro «Mona Lisa» de Leonardo Da Vinci com sistema eléctrico dois-pés-duas-pernas que o façam andar por toda a casa e mesmo subir escadas.
HARPO MARX -- O papel de Iago na ópera «Otelo» de Verdi.
JACK LONDON -- um pequeno cemitério de aldeia.
KRAZY KAT -- Uma árvore japonesa que, dando-se-lhe um charuto, apresenta um telefone anos 30. Na linha, um padre yugoslavo informa continuamente sobre as experiências do Frankenstein de Utrecht.
MAE WEST -- Uma almofada com a forma da cara da senhora Golda Meir.
JERRY LEWIS -- A Torre da Água, de Chicago, mas um pouco mais alta e cortada em fatias longitudinais de onze centímetros cada.
BUSTER KEATON -- Um avião pilotado por uma girafa. Fins de semana: só a girafa.
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25
Ago 08

...

Não adormeças logo agora
que eu estava mais disposto e fluente
a falar-te, ainda que de novo, da contemporaneidade

ou não adormeça eu
logo agora
que o teu cabelo se encosta
à suavidade das almofadas
animando o amor do Donald e da Daisy
que, entretanto, já transpuseram
a barreira lisa do pano e do desenho
e se encaminham já para o quarto ao lado.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues
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14
Ago 08

RUA DE COOLELA

No ângulo extremo da Ponta Vermelha,
lá onde a ruína do farol é sentinela decrépita,
traçado linear pendendo para a incerteza
da barreira sujeita aos caprichos das enxurradas
de verão. Sentado no degrau, diante

do eucalipto gigantesco a interditar o horizonte.
O quintal barricado do Hugh Lemay,
agente transitário e (secreto) de Sua Majestade.
Que conste, pelos seus bons ofícios, as frotas
nazi e italiana sofriam pesadas baixas

ao largo da costa. Havia também
Marina, filha mais velha do pianista
do casino, pernas magras enfeitiçando,
qual deusa na selva dos comic books,
o meu desejo obscuro. Em redor habitações

modestas de pequenos funcionários e da tropa
pequena, a cumplicidade dos companheiros
partilhando amizade nos esconderijos
da exaurida e obsoleta Carreira de Tiro,
fascínio misterioso e intrigante,


oculto na densa camuflagem do baldio,
velha fortaleza a recato de olhares indiscretos:
um mundo tecido de fantasia a encobrir
a exígua, quase anónima, rua que conduziria,
afinal, ao curso errado de meus dias.

Rui Knopfli
publicado por RAA às 01:27 | comentar | ver comentários (2) | favorito
26
Jul 08

SILÊNCIO



E. M. Melo e Castro

f#1
publicado por RAA às 13:49 | comentar | favorito