02
Abr 17

"Se a morte fosse uma casa branca"

Se a morte fosse uma casa branca

e eu tivesse uma palavra breve e obscura.

Se a morte fosse um sono tão leve

que o murmúrio do vento a deixasse enlouquecida.

Se a morte fosse o instante entre o ir e voltar

uma pedra redonda e frágil atirada ao sono

do mundo.

Reunia os meus mortos, falava-lhes da sombra

que habita nas coisas

das malvas rodeando o poço.

Talvez a música do vento nos salgueiros

ou a canção das abelhas ardesse

intacta por dentro das palavras.

 

Fernando Jorge Fabião, Na Orla da Tinta (2001)

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13
Dez 15

OLHANDO O MAR

Sentados na varanda olhando o mar

não sei ao certo o que pensam ou recordam

se um filho morto ou a viagem nunca feita

um verão há muito um só verão não mais.

Não sei sequer se esperam qualquer coisa

ou simplesmente olham o mar

sentados na varanda ao fim da tarde.

Dois traços sobre um azul de Turner

um outro traço; a sugestão de um barco

aquele em que navegam ao fim dsa tarde

quando pego na caneta e devagar começo: 

«Sentados na varanda olhando o mar»

 

5-4-2003

 

Manuel Alegre, Doze Naus (2007)

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23
Jul 15

IN MEMORIAM

Como quem sereno encosta

A porta de sua casa

E para outra se muda,

Assim vão os meus amigos

Pouco a pouco morrendo.

Em silêncio desandam

Para mundos desejados

Ou então a descobrir.

 

Sem palavras, sem um gesto,

Partem feitos clandestinos

Sem poderem despedir-se.

 

Seguem decerto saudosos,

Mas confortados. Os seus

Hão-de sempre recordá-los.

 

Liberto Cruz

(JL de ontem, no «Destaque»

dedicado a Maria Barroso)

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18
Jun 14

"Os filhos dos mortos já não são irmãos"

Os filhos dos mortos já não são irmãos

na vida bifurcada de que sobram

 

e embora o que procria procriase

e aquele que foi amado amor criasse

 

os filhos dos mortos são corpos das sombras

que neles reproduziram quem não são.

 

Helder Macedo, Viagem de Inverno

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12
Mai 14

"A morte dá poemas para jovens."

A morte dá poemas para jovens.

 

Se somos mais os mortos do que os vivos

se já só posso amar tantos que amei

com as letras fingidas da memória

 

se mesmo tu

o meu amor sem tempo

também hás-de morrer na solidão

duma morte real e sem partilha

 

aos poemas da morte sobrou vida.

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08
Jul 13

EM TEMPO ALHEIO

Peço desculpa de ser

o sobrevivente.

Drummond, As Impurezas do Branco

 

 

Demasiados mortos para a

minha memória

O dia está aí um projector nos rostos

que repetem

cenas, deslocando-se entre os móveis

polidos pelos anos e as árvores, com falas retardadas

Não há quem sobreviva a ninguém no cenário

são somente aparências o que está

e o que falta,

todos em cada um,

enquanto ausentes o habitam como casa

em tempo alheio

Deixastes toda a esperança vós que entrastes

na memória

 

Gastão Cruz,

Rua de Portugal / O Escritor #22

(Lisboa, 2007)

 

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20
Jun 13

À MEMÓRIA DE MEU IRMÃO JOAQUIM

«Escrever é vencer a Morte!»

Poemas Imperfeitos

 

Foi no Dia da Raça que morreste!

Mas não morreste, não: subiste aos Céus,

Onde o teu coração nas mãos de Deus,

Como um fruto de amor tu ofereceste.

 

E Deus sorriu, ao ver-te sem os véus

Das terrenas vaidades, e tiveste,

Lá no fulgor da Jerusalém Celeste,

A acolher-te na Luz, todos os teus.

 

Os teus já partiram, porque a nós,

Os que somos ainda aqui dispersos,

Quiseste um bem deixar que nos conforte:

 

Teu vulto de saudade, a tua voz,

Que fala nos teus livros e em teus versos,

Porque é escrevendo que se vence a Morte!

 

10 de Junho de 1979

 

Anrique Paço d'Arcos

 

in Joaquim Paço d'Arcos, Correspondência

e Textos Dispersos (1942-1979)

(edição de João Filipe e Maria do Carmo Paço d'Arcos)

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05
Jun 13

MEU PAI

Os meus primeiros passos animaste,

Os meus primeiros erros corrigiste;

E o amor do trabalho que me incutiste

Com a própria lição que me legaste.

 

A ser honesto e digno me ensinaste,

E por igual também me transmitiste

O gosto pelo estudo, e o prazer triste

Do cultivo das musas, que ensaiaste...

 

Meu adorado Pai, quando me atrevo

A pensar no que sou, e no que devo

Ao teu conselho, auxílio e educação,

 

Que santo orgulho eu sinto em continuar-te!

Pois todo o meu engenho e a minha arte

Obras tuas, meu Pai, apenas são!

 

Delfim Guimarães,

Alma Portuguesa

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21
Mai 13

ELLE AVAIT PRIS CE PLI...

Elle avait pris ce pli dan son âge enfantin

De venir dans ma chambre un peu chaque matin.

Je l'attendais ainsi qu'un rayon qu'on espère,

Elle entrait, et disait: Bonjour, mon petit père.

Prenait ma plume, ouvrait mes livres, et s'asseyait

Sur mon lit, dérangeait mes papiers, et riait,

Puis soudain s'en allait, comme un oiseau qui passe.

Alors je reprenais, la tête un peu moins lasse,

Mon oeuvre interrompue, et tout en écrivant,

Parmi mes manuscrits, je rencontrais souvent

Quelque arabesque folle et qu'elle avait tracée,

Et mainte feuille blanche entre ses mains froisée,

Où, je ne sais comment, venaient mes plus doux vers.

Elle aimait Dieu, les fleurs, les astres, les prés verts,

Et c'était un esprit avant d'être une femme.

Son esprit reflétait la clarté de son âme,

Elle me consultait sur tout à tous moments.

Oh! que de soirs d'hiver radieux et charmants,

Passés à raisonner langue, histoire et grammaire,

Mes quatre enfants groupés sur mes genoux, leur mère

Tout près, quelques amis causant au coin du feu!

J'appelais cette vie être content de peu!

Et dire qu'elle est morte! Hélas! que Dieu m'assiste!

Je n'étais jamais gai quand je la sentais triste;

J'étais morne au milieu du bal le plus joyeux

Si j'avais, en partant, vu quelque ombre en ses yeux.

 

Victor Hugo

in Pierre Ripert, Dictionnaire Anthologique de la Poésie Française

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30
Abr 13

ANJO ENFERMO

Geme no berço, enferma, a criancinha,

Que não fala, não anda e já padece...

Penas assim cruéis por que as merece

Quem mal entrando na existência vinha?!

 

Ó melindroso ser, ó filha minha!

Se os céus ouvissem a paterna prece,

E a mim o teu sofrer passar pudesse,

-- Gozo me fora a dor que te espezinha.

 

Como te aperta a angústia o frágil peito!

E Deus, que tudo vê, não t'a extermina,

Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito

 

Sim, é pai, mas -- a crença no-lo ensina:

-- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,

Nunca teve uma filha pequenina!...

 

Afonso Celso

Evaristo Pontes dos Santos, Antologia Portuguesa e Brasileira

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