21
Set 18

de A MENINA GOTINHA DE ÁGUA

[...]

Era

um dia de sol

na Primavera,

trinavam

os passarinhos

nos seus violinos,

tocavam os grilos

e os grilões

nos seus rabecões,

assobiavam os melros

nos seus flautins

e os sapos,

os sapinhos

e os sapões,

à porta

das suas casotas,

estavam a ouvir

contada pelo sapo Zé Manel

a história

dum menino

que foi poeta e pastor

da Primavera

e que era

muito amigo

dos sapos

e sapinhos

e sapões

e de todos

os que são

(como os sapos)

humildes mas têm

bom coração.

 

Papiniano Carlos, A Menina Gotinha de Água (1962)

Crianças-SapoZeManel-JoanaQuental-PapinianoCarlos

(Joana Quental)

 

publicado por RAA às 13:32 | comentar | favorito
30
Ago 18

A DANÇA DOS TEMPOS POSSÍVEIS

O passado não dorme

nem jazz.

 

Recusa a quietude

da memória

mas sem me chamar

para dançar.

 

Gira mundo e sozinho, sozinho,

entrecruzando meus caminhos

presentes, lançando ao ar

o perfume em torvelinho

de passados outros, e presentes,e futuros

que poderiam ser, e ter sido, e contudo...

 

Thássio G. Ferreira, (Des)nu(do) (2016)

publicado por RAA às 22:09 | comentar | favorito (2)
13
Ago 18

"Funaná entorna, esfrega"

Funaná entorna, esfrega

dá ao chão o som inaudível

da arte. É cheiro de suor na escultura

mordida de mulher na altura da cintura

E busca a mão pastar

os degraus vermelhos das nádegas

Funaná entorta, esfrega a delícia

de espremer no corpo

o outro lado quente da balança.

 

Rony Moreira, Esticar o Infinito até à Borda do Prato (2017)

publicado por RAA às 18:36 | comentar | favorito
27
Nov 17

EPIGRAMA

O cego deu à manivela

Da velha e triste pianola,

Que era a alegria da vila;

Mas já ninguém vem à janela.

-- Pois, vindo, davam-lhe esmola...

E, ocultos, podem ouvi-la. 

 

Carlos Queirós, Desaparecido (1935)

publicado por RAA às 18:38 | comentar | favorito (1)
30
Mar 16

«He loved beauty that looked kind of destroyed.»*

Gostava dessa espécie de beleza

que podemos surpreender a cada passo,

desvelada pelo acaso numa esquina

de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta

que foi toda a infância de alguém,

com visitas ao domingo e tardes no quintal

depois da escola; a beleza crepuscular

de alguns rostos num retrato de família

a preto e branco, ou a de certos hotéis

que conheceram há muito os seus dias de fulgor

e foram perdendo estrelas; a beleza condenada

que nos toma de repente, como um verso

ou o desejo, como um copo que se parte

e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.

Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós

consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada

onde a vida encontra o espelho mais fiel.

 

*James Gavin, Deep in a Dream: The Long Night Of Chet Baker, Londres, Vintage, 2003, p. 312.

 

Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira /

/ Resumo -- A Poesia em 2009

publicado por RAA às 21:32 | comentar | favorito
31
Out 14

JOSEFINA BAKER

De qualquer ilha escondida

no quente mar colorista,

veio essa Baker trazida

pla mão da 5.ª avenida:

o roteiro fantasista.

 

Essa negra Josefina

deixou Colombo vexado,

ligando a terra-menina,

que é branca e greco-latina,

ao continente sobrado...

 

Um demónio de negrura:

trópico aroma se exala.

Seu corpo a imagem figura

de um brônzeo clima, em tontura,

cercando à noite a senzala.

 

O ritmo antigo é perdido,

outro mundo volverá.

Nesta Europa sem sentido

a Baker marca o ruído

e o mediano o Dekobra.

 

Façam batuque, batuque,

plantem na Europa o Haiti.

Caliça que a alma amachuque,

que caia o tecto de estuque

no senhor de Valéry.

 

Velha casa brazonada,

deu-lhe o vento de ruína.

A celta flor desfolhada,

morreu de tédio pisada

aos pés dessa Josefina.

 

Luís de Montalvor,

presença # 19,

Março 1929

publicado por RAA às 13:30 | comentar | favorito
25
Set 14

"Silêncio"

Silêncio

 

 

 

Mestre

 

 

 

O mestre

 

 

 

Supremo

 

Yèvre-le-Châtel

7 de Julho 90

 

Alberto de Lacerda

publicado por RAA às 13:15 | comentar | favorito
29
Jan 14

"Retirados à altura da sua idade, ouviam."

Retirados à altura da sua idade, ouviam.

Mas ouviam frequências onde o rumor do mundo,

esbatido, somente amanhecia

azul visível, atento timbre e pulso.

Ouviam tudo quanto a si se ouvia

no concerto de tudo.

E nessa solidão de intensa companhia

em que a altura da idade era um azul profundo.

 

Fernando Echevarría

Relâmpago #2 (1998)

 

publicado por RAA às 19:54 | comentar | favorito
04
Jun 13

CORAL

É um dos corais de Leipzig,

o quarto. Sem saber como, desceu ao chão

da alma. A música

é este abismo, esta queda

no escuro. Com o nosso corpo

tece a sua alegria,

faz a claridade

dos bosques com a nossa tristeza.

Pela sua mão conhecemos a sede,

o abandono, a morte. Mas também

o êxtase de estrela em estrela.

E a ressurreição.

 

Foz do Douro, 19.9.97

 

Eugénio de Andrade

in Relâmpago #2, 1998

publicado por RAA às 13:05 | comentar | ver comentários (4) | favorito
31
Mai 13

VARIEDADES

Começa o bailado...

...O cenário é oiro.

Parece um tesoiro

Já desencantado.

 

O som é parado.

Como o dum besoiro,

Ou cantar de moiro,

Dolente -- arrastado.

 

...E a tal bailarina,

No ritmo quente

Do seu corpo nu,

 

É já serpentina

Mais enlanguescente

No bailado hindu.

 

Artur Hespanha

presença #16, Coimbra, 1928

publicado por RAA às 19:44 | comentar | favorito