"A folha em branco:"
A folha em branco:
um campo minado.
Liberto Cruz, Sequências (2000)
Escrever o poema como um boi lavra o campo
Sem que tropece no metro o pensamento
Sem que nada seja reduzido ou exilado
Sem que nada separe o homem do vivido
Sophia de Mello Breyner Andresen,
O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997)
Sentados na varanda olhando o mar
não sei ao certo o que pensam ou recordam
se um filho morto ou a viagem nunca feita
um verão há muito um só verão não mais.
Não sei sequer se esperam qualquer coisa
ou simplesmente olham o mar
sentados na varanda ao fim da tarde.
Dois traços sobre um azul de Turner
um outro traço; a sugestão de um barco
aquele em que navegam ao fim dsa tarde
quando pego na caneta e devagar começo:
«Sentados na varanda olhando o mar»
5-4-2003
Manuel Alegre, Doze Naus (2007)
Componho com as linhas dos meus dedos outros puros
cujas pontas façam girar nenhum raio sucessivo
de sol Dedos sem o cadastro de enlaces doendo
e se declamo ficções que eles escorem
Sem par noutras mãos Nem fundos na algibeira
mexidamente obscenos e a salvo da garra dos gatilhos
Dedos com um horizonte de pálpebra baixando
que assim não acordem as formas tacteadas
donde um sono mane estrie os paços vedados
Dedos de que mesmo a chuva escorra sem uma lágrima
Ou os que já compus e assinam e adiam o poema.
Sebastião Alba, A Noite Dividida (1996)
Sílabas tão leves
que nem a água
estremece.
Fernando Jorge Fabião, Na Orla da Tinta
é preciso escrever o poema. formar a
palavra. amá-la.
escrever por exemplo o homem e
pôr os testículos à
mostra para confirmação do
substantivo.
é preciso também escrever amor a
tinta da china preta de
preferência para
maior duração do
coito.
e mar. é preciso escrever mar
navio vaga como quem
semicircula uma foice como quem
desenha uma
gaivota na charneca do
mar.
e é preciso também escrever
medo
para que o poema tenha cãs
e a esperança cresça
prenha
no grito mais secreto das manhãs.
Eduardo Olímpio,
in Cadernos Despertar #1 (1982)
Corre um barco no sulco do canal
mais longínquo da ria; enquanto passo
para o poema o seu percurso, faço
morrer a imagem branca que imortal
há pouco parecia; agora o espaço,
que da mancha mortal, ponto de cal,
livre ficou, um troço é afinal
do ramo de água que na tarde traço,
a sucessão olhando de um e e outro
avulso braço da laguna fria,
e desfaço, no verso onde esse barco
naufragou quando quase ainda o via,
correndo e já ausente, breve potro,
na distância da água vivo rastro
Gastão Cruz,
in O Escritor #22
(Outubro 2007)
Os poetas comem-se uns aos outros
na ânsia do martelo de Thor
das vísceras poéticas do potros
do soneto em dó maior
Os poetas são p'ra devorar à colherada
trincar as palavras com desdém
a poesia não tem hora marcada
não se compra ao quilo ou ao vintém
Trituram-se os versos sem piedade
as estrofes chovem nos rios a sul do norte
um vate é animal de soledade
sempre em busca de si até à morte
Os poetas não são mais que canibais
comem-se a eles e não sobra nada
diluem-se no fervor dos bacanais
apagam-se a sonhar co'a boa fada.
Dick Hard,
De Boas Erecções Esté o Inferno Cheio
Escrever, tecer um anel
em redor das coisas
A tinta prolonga
o sangue
consome o saber das sílabas
Com um pé na norma
e outro na errância
navego no coração do vento
Respiro no milagre
dos gestos ínfimos e graves
Faço de espanto
a regra e o sinal
Talvez adormeça
encostado ao azul
na mais pura ignorância da morte
Fernando Jorge Fabião,
Na Orla da Tinta