14
Dez 17

"Caudais de sangue desencadeados"

Caudais de sangue desencadeados

Pela injustiça milenária

A força bruta

 

O rio

Passam a chamar-lhe

História

 

Caudais de sangue

Entrecortados

Por uma luz que a injustiça

E a força bruta

Não conseguiram nunca

Contaminar

 

As linhas não se encontram

 

O contraponto

Não existe

 

Universos

Completamente alheios

Um ao outro

 

Os caudais de sangue

Prosseguem

Desaguam na história

E no que passaram a chamar

De progresso

 

Não há redenção

 

Voltado para a luz

Há outo plano

Há o crescer da árvore e do poema

O florir do amor

Irmandade imensa

Milenariamente

Escorraçada

 

Sobrevivendo apenas

Na ocultação profunda

Mesmo quando brilha

De dentro

Para todos os lados

 

Londres

6-7 de Agosto 90

 

Alberto de Lacerda, Átrio (1997)

publicado por RAA às 13:24 | comentar | favorito
10
Fev 15

"Eu sabia por ela as estações»

Eu sabia por ela as estações

os esquilos os corvos as gaivotas.

Chegada a primavera abria os nós

em flores precipitadas e carnudas

de longas redondezas tacteantes

que batiam no vidro da janela.

Não dava fruto a minha castanheira

e na verdade não era sequer minha

ou só seria porque nos olhámos

cada manhã por mais de trinta anos.

Mas dava flores e esquilos e gaivotas

verão outono corvos primavera

sem contabilidades biológicas

doutras fertilidades transmissíveis.

Dava flores como se desse versos

sem precisar por isso de escrevê-los

como os amantes se amam num só corpo

sem ver onde um começa e o outro acaba

aberta toda em lábios vaginais

com uterinos longos falos brancos.

Também este ano floriu no tempo certo.

Mas o inverno chegou em plenas maias.

Disseram que a raiz rachou ao meio

que o centro do seu tronco estava oco

não percebiam como tinha flores.

Cortaram membro a membro a minha árvore

ficou só a raiz e o seu vazio

e sobre o campo em volta a neve quente

das suas flores perplexas

impossíveis.

 

Helder Macedo, Viagem de Inverno

 

publicado por RAA às 00:01 | comentar | favorito
20
Jun 14

"A rosa canta"

A rosa canta

Para além da janela

Há muitos dias

 

 

 

Vai esmorecendo

 

 

Sem que ninguém

                             quase

Dê por isso

 

Yèvre-le-Châtel

4 de Julho 90

 

Alberto de Lacerda, Átrio

publicado por RAA às 13:03 | comentar | favorito
16
Jan 14

ÁRVORES DO ALENTEJO

Ao Prof. Guido Battelli

 

Horas mortas… Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido… e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção duma fonte!

 

E quando, manhã alta, o sol posponte

A oiro a giesta a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis do horizonte!

 

Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

 

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

-- Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

 

Florbela Espanca,

Charneca em Flor (1931) /

Antologia Poética

edição de Fernando Pinto do Amaral 

publicado por RAA às 19:20 | comentar | favorito
30
Set 13

PÁTRIA

Eu amo o meu País, embora sobre a Terra

Em cada homem veja apenas um irmão.

Nós somos como a esteva ou a urze da serra

Que só floresce bem no seu dorido chão...

 

Na Pátria, o coração é uma árvore. Cresce,

Prendendo-lhe a raiz e em flor sorrindo ao céu!

Quanto mais se ergue em flor, mais ele à raiz desce,

-- Mais ele beija e abraça o chão onde nasceu...

 

Bernardo de Passos

Portugal na Cruz / Líricas Portuguesas - 2.ª Série

edição de Cabral do Nascimento

publicado por RAA às 19:23 | comentar | favorito
19
Set 12

LE POÈTE S'EN VA AUX CHAMPS...

Le poète s'en va aux champs; il admire,

Il adore; il écoute en lui-même une lyre;

Eltle voyant venir, les fleurs, toutes les fleurs,

Celles qui des rubis font pâlir les couleurs,

Celles qui des paons même éclipseraient les queues,

Les petites fleus d'or, les petites fleurs bleues,

Prennent, pour l'accueillir agitant leurs bouquets,

De petits airs penchés ou de grands airs coquets,

Et familièrement, car cela sied aux belles:

«Tiens! c'est notre amoureux qui passe!» disent-elles.

Et, pleins de jour et d'ombre et de confuses voix,

Les grands arbres profonds qui vivent dans les bois,

Tous ces vieillards, les ifs, les tilleuls, les érables,

Les saules tous ridés, les chênes vénérables,

L'orme au branchage noir, de mousse appesanti,

Coome les ulémas quand paràît le muphti,

Lui font des grands saluts et courbent jusqu'à terre

Leurs têtes de feuillé et leur barbes de lierre,

Contemplent de son front la sereine lueur,

Et mumurent tout bas: "C'est lui! cést le rèveur!"

 

Victor Hugo

 

 

publicado por RAA às 19:09 | comentar | favorito
16
Mar 12

ORQUÍDEAS

Foi um erro substituir

por orquídeas

as flores artificiais

no centro da mesa.

Exigem luz, cuidados,

uma humidade temperada.

Bem as conheço:

flores venenosas

donas de uma beleza gratuita.

Às outras bastava passar

o pano do pó às vezes,

nem olhava para elas,

para as suas folhas baças,

para os seus ramos secos de arame;

estas ensinam-me, com esplendor, a tua morte,

a ferida com que o mundo vai cabar.

 

Luís Filipe Parrado

publicado por RAA às 14:56 | comentar | favorito
27
Fev 12

OS MEDRONHEIROS

Nos braços verdes, nus,

pousou um bando,

verde, leve,

d'asas glaucas

anunciando

o ocaso do inverno,

Cavalgada de Niebelungos que no longe se perde.

 

No estio,

o arnês,

do sol

se desfez

num chuveiro 

d'oiro mole;

em cada gomo

-- um bago d'oiro

a tentar-me!

 

Quem me dera,

medronheiro,

como tu,

dar um fruto

que pudesse embriagar-me!

 

Escuto,

das seivas o corpo ébrio,

todo nu,

bailando no silêncio

rumoroso da floresta,

onde o vento canta

-- a eterna canção da gesta.

 

Os medronhos,

um a um,

vão caindo,

terminou o festim.

Nas taça, o vinho,

já tem sono,

já tem sonhos de mim.

 

E o outono,

pelo oiro do caminho,

vindo,

vem bailando

na dança-dos-véus,

dança das névoas.

 

Terminou o festim.

Principia a saturnália das folhas mortas.

 

António de Navarro

publicado por RAA às 00:06 | comentar | favorito
12
Dez 11

GIRASSÓIS

Tem girassóis amarelos

o meu quadrado de sol

 

a vida espancada passa

mas o quadrado de sol

aberto sobre o jardim

os girassóis amarelos

velhos

mostram o fim.

 

José Luandino Vieira

publicado por RAA às 11:06 | comentar | favorito
29
Nov 11

CANÇÃO DA ROÇA

Roça tem sol

roça tem água

café maduro

e cacau gostoso...

 

              Roça tudo tem!

 

Mas roça também tem

sangue de negro e mulato

correndo nas ribeiras

saltitando nas lavadas

gritando

gritando sempre:

«Fugi di roça

Fugi di roça!»

E na ânsia de levar o grito

para o vale e para a montanha

corre por todos os cantos da roça!

E esse sangue ne negro e mulato

é seiva que faz properar...

o cafeeiro cresce

é cacau gostoso

e a verdura trepa

trepa para os céus!

Mas o grito desse sangue derramado

fica ao de cima pairando no tempo...

E nas noites de vento

e nas noites de calma

nas manhãs de sol

e nos dias de chuva...

 

                           «Fugi di roça

                            fugi di roça!»

 

Terêncio Anahory

publicado por RAA às 15:00 | comentar | favorito