26
Fev 18

LEI

Livre, livre mas sem asas.

Homem apenas

A fronte erguida

O olhar em frente

O lábio a sorrir

para a manhã...

 

Os passos

apenas vão seguindo

o que na rasgada treva se adivinha...

 

Os braços construindo

o que é flor, e é fruto,

e é semente,

e flor e fruto

de amanhã...

 

E vamos:

o mundo que nos leva

vai,

não fica à nossa frente.

 

Alexandre Dáskalos, Poesia (1961)

publicado por RAA às 13:32 | comentar | favorito
24
Out 17

CREPÚSCULO

Nas horas paradas, indecisas

em que os olhos olham

a mesma cor no mundo

e, um ténue claridade se suspende

no céu, entre o Sol e as estrelas...

no compasso de espera,

ainda dia e não sei se noite,

é que acorda o nosso coração.

 

E tange

a mesma canção amarga,

que vem das árvores,

dos pássaros, da gente

e onde a síncope da noite

colhe um a um todos os gestos.

 

Deixou de brilhar a água

translúcida do lago.

A árvore sustém na copa de sombra

os ramos que apenas sabem que vacilam.

Os pássaros são pios

gravados na memória

e em redor.

 

Percebem-se ainda os passos

da mulher que desce a rua.

O resto, é um traço vago

desenhado em reflexos baços

na penumbra.

 

Tudo se retrai e assusta

como num princípio de Vida.

 

Somos crianças e vamos

levadas por um destino comum

de sombras informes.

Mistério que somos

de nada e além

em agigantadas perspectivas de Morte

confundindo-se no mármore frio

de místicos temores...

 

...E a Vida continua.

Serena se levanta

do fundo da memória

nos ramos que se agitam,

nos pássaros que voam.

E balbucia e traça e canta

a mensagem futura

para embalar o dia que vem

na aurora distante.

 

Alexandre Dáskalos, Poesia (1961)

publicado por RAA às 13:01 | comentar | favorito
05
Mar 12

CARTA

Jesus Cristo Jesus Cristo

Jesus Cristo, meu irmão

Sou fio dos pais da terra

Tenho corpo p'ra sofrer

Boca para gritar

E comer o que comer

Os meus pés que vão

No chão

Minhas mãos que são de trabalho

Em coisas que eu não sei

E não tenho nem apalpo

Trabalho que fica feito

Para o branco me dizer

«Obra de preto sem jeito»

E minha cubata ficou

Aberta à chuva e ao vento

Vivo ali tão nu e pobre

Magrinho como o pirão

Meus fios saltam na rua

Joga o rapa sai ladrão

Preto ladrão sem imposto

Leva porrada nas mãos

Vai na rusga trabalhar

Se é da terra vai para o mar

Larga a lavra deixa os bois

Morre os bois... e depois?

Se é caçador de palanca

Se é caçador de leão

Isso não faça mal nenhum

Lança as redes no mar

Não sai leão sai atum...

Jesus Cristo Jesus Cristo

Jesus Cristo meu irmão

Sou fio dos pais da terra

Um pouco de coração

De coração e perdão

Jesus Cristo meu irmão

 

Alexandre Dáskalos

publicado por RAA às 15:14 | comentar | favorito
02
Fev 12

PORTO

Havia nos olhos posto o sentido

de não vencerem distâncias.

Calados, mudos, de lábios colados no silêncio

os braços cruzados como quem deseja

mas de braços cruzados.

 

Os navios chegavam aos portos e partiam.

Os carregadores falavam da gente do mar.

A gente do mar dos que ficam em terra.

As mercadorias seguiam.

Os ventos dispersos na alma do tempo,

traziam as novas das terras longínquas.

Segredavam-se em noite e dias

a todos os homens

em todos os mares

e em todos os portos

num destino comum.

 

Os navios chegavam ao porto

e partiam...

 

Alexandre Dáskalos

publicado por RAA às 11:36 | comentar | favorito
10
Dez 10

...

Eis-nos aqui no caminho
traçado por nossa mão.
Cada braço traz um punho
e cada punho um punhal.

Bandoleiros na vida,
vida errante era o destino!
Nas costas nasceram traços
da vida dura, sem pão.

Rugas dos covais da vida
cemitérios de ilusão!...
Mortos, mortos mas com vida
quase à beira do chão.

Quase à beira do chão
rastejantes, vermes, podres!...
Pobre miséria do mundo
só o dinheiro é patrão.

Só o dinheiro é senhor
dos vermes sujos do chão

Cada verme traz um punho
Com uma faca na mão.

Alexandre Dáskalos
publicado por RAA às 17:04 | comentar | favorito