10
Dez 13

CINEMATOGRAFIA

Cego, o comboio corre léguas,

Com furioso e soturno martelar:

Dum cavaleiro medievo,

Que só sabe vencer,

Lembra-me o galopar...

 

Tem pressa de levar-me

À Cidade do Prazer.

 

Lá fora, os véus do luar ondulam

Sobre os prados;

Passam tapetes imensos,

Amarelos e arroxeados,

Que parecem suspensos...

 

Chego, e o meu desejo se persuade

Do coquetismo da cidade.

 

Há ruas longas, lisas como braços,

Com vestidos de mosaicos,

Onde mulheres de perfil lendário,

E olhos arcaicos,

Se cruzam como peixes num aquário...

 

Quando esta perspectiva

No meu País dos Sonhos se alongava,

Já o Tédio, a meu lado,

O sangue me gelava:

 

Como ele vinha disfarçado!

 

Eis o meu corpo, filhas das Luxúrias,

Tratai-o qual inimigo:

Não esqueçais que o saber

E a lentidão dum ritual antigo

São a chave do prazer...

 

Alexandre de Aragão,

presença #18 (1929)

 

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22
Jul 12

CANÇÃO DO ACASO

Hoje que os passos fugiram,

Sonoros, da terra inteira,

Que os nossos passos na poeira

Das eras mortas expiram; 

 

Que aguarda, em vão, penitentes

Algum deserto muslim:

-- Mesmo no meio das gentes

Ardem desertos sem fim... --

 

Ou a montanha salutar

O Enviado que for

Lá, da planície, incubar

Novo Verbo redentor.

 

Hoje que o homem, sem temores,

Há muito os deuses matou,

Só tu avivas as flores

Que o cepticismo gelou.

 

Vais comigo, e em tudo poisa

A tua asa, em redor:

Mudas de coisa p'ra coisa

Como as abelhas de flor.

 

A vida, sem o saber,

Abre-te as velas bem alto,

Aonde possas de salto,

Vento do acaso, bater.

 

Acaso -- o perigo vencendo,

Ou ao prazer sobrevindo --

De Ícaro as asas batendo,

Ou Dafne a Apolo fugindo...

 

Alexandre de Aragão

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15
Fev 11

ADAGIO

As folhas d'oiro, uma a uma,
Vão os plátanos despindo;
Ouço-as na álea caindo
Numa cadência de espuma...

Mais uma, negra, se abate,
Como bacante já lassa:
Rolando quase me bate
Num agoiro de desgraça.

Erguem-se agora ligeiras,
Lá partem, rentes do chão,
Todas juntas em fileiras,
Numa brusca emigração.

Sobre as áleas alagadas
Parecem almas sem nome
Que leva pra além dum rio
Caronte de mãos geladas...

Dezembro abre com fome
A goela de vazio...

Alexandre d'Aragão
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