25
Nov 14

UMA VIDA DE CÃO

Não

não é a poesia caixa de música

ou a poesia piolho místico enterrado no sebo destes dias

ou qualquer outra

que podem dissolver a tua alma

tão problemática

no vinho da beatitude

 

Ah

o «mistério» da poesia a poesia

técnica da confusão

a capelista poética e os primeiros fregueses

ainda a medo ainda receosos

de te pedirem a Dor em alfinetes que não tenhas

logo ali à mão

 

E quando dizes «Poesia» eu tenho nojo

aquele nojo violento que me dá

o olhar furtivo a atenção desatenta

dos que se demoram nos lavabos nas salas dos cinemas

de mãos distraídas procurando

a solução da noite

 

Instalaram-se em ti

a mesma contracção suspeita

a mesma hipocrisia o mesmo sobressalto

a mesma curva obscena

que o olhar descreve

goza

e disfarça

 

Quando dizes «Poesia» dizes medo

dizes família tradição classe

e a vida de cão que te esperava

e que é hoje a tua vida a tua «transcendente»

vida de cão

 

                         *

 

Ensinaram-te palavras que pareciam

prontas a derrotar quem as ouvisse

ensinaram-te gestos para elas

e a tal ponto te humilharam

que te puseram de pé

limpo

inteligente

e aprumado

 

Pronto a seguir

seguiste

e agora estás aqui pois claro

angustiado e iludido

mas deliciado

 

                         *

 

Atá aos útlimos arcanos

cafés e leitarias

seguiste André Breton

ou a sombra dele

e a aventura mental que procurava

um sinal exterior

um estilhaço vivo do acaso

a Nadja lisboeta que salvasse

ou a noite ou a vida

acabou em «bons» poemas «maus» poemas

em palavras e palavras

 

E coberto de palavras enterrado

numa terra de murmúrios de gemidos

teu coração já nada faz mover

senão moinhos de palavras

e «a dor é grande» dizes tu

«mas sublime»

 

*

 

Mas não sou eu que te lamento

Os teus mitos esperam-te

já impacientes

 

Agora põe-te a andar

agora passa por cá daqui a uns anos

 

Talvez me encontres

talvez possa fazer qualquer coisa por ti

qualquer coisa simples

quase inútil

quase ridícula

          oferecer-te uma sílaba

          um conselho

          um cigarro

 

Alexandre, O'Neill,

Tempo de Fantasmas / Poesias Completas 1951/1981

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09
Dez 11

CANÇÃO

Que saia a última estrela

da avareza da noite

e a esperança venha arder

venha arder em nosso peito

 

E saiam também os rios

da paciência da terra

É no mar que a aventura

tem as margens que merece

 

E saiam todos os sóis

que apodreceram no céu

dos que não quiseram ver

-- mas que saiam de joelhos

 

E das mãos que saiam gestos

de pura transformação

Entre o real e o sonho

seremos nós a vertigem

 

Alexandre O'Neill

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06
Jan 11

A BILHA

Bilha: forma que se casa
Com o meu coração,
A dar-me, simples, a asa,
Como um menino a mão!

Bilha que serve, na mesa,
E espera, sobre a toalha,
Que a gente sinta a beleza
De quem trabalha...

Bilha: donzela que dançou,
Dançou tanto de roda,
E na "pose" que me agrada,
De repente ficou!

Alexandre O'Neill
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17
Dez 10

Poesias Completas

autor: Alexandre O'Neill (Lisboa, 19.XII.1924 - 21.VIII.1986)
título: Poesias Completas
subtítulo: 1951 / 1981
prefácio: Clara Rocha
colecção: «Biblioteca de Autores Portugueses»
edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
local: Lisboa
ano: 1982
págs.: 504
dimensões: 24x15x2,7 cm. (brochado)
capa: grafismo de Armando Alves
impressão: Gráfica Maiadouro (Maia)
tiragem: 3000
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31
Out 10

DEIXA

À tua mãe o marfim crucificado
ao teu pai o vício mais ronceiro
e a quem quiser
os lindos pentes da virtude

Frases célebres
todas
e não esqueças aquela
que diz assim
                              PAIS
                          que fazeis?
                  OS VOSSOS FILHOS
                       não são tostões
                GASTAI-OS DEPRESSA!

Deixa também a ilusão de que te amaram
àquelas duas que ali não vês

Só no tempo em que os suicidas
como os animais falavam
valia a pena desiludir

Deixa ainda
o que a álgebra mais secreta
decidiu a teu favor

A sombra que projectaste
talvez alguém a resolva
num diamante cruel

Alexandre O'Neill
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21
Out 10

POEMA CONFIADO À MEMÓRIA DE NORA MITRANI

Se eu pudesse dizer-te: -- Senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar o mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém: -- Vê se adivinhas...
      Então um fértil jogo amor seria.
      Não este descerrar a mão vazia!

Alexandre O'Neill
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16
Ago 09

A UMA OLIVEIRA

Muito antes de Os Lusíadas diz-se que já aqui estavas.

Pré-camoniana,
sazão a sazão,
foste varejada séculos a fio.

O pinho viajou.
tu ficaste.

Ao som bárbaro de um rádio de pilhas,
desdobram toalhas
na tua sombra rala.

Alexandre O'Neill
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03
Abr 09

GATO

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

Alexandre O'Neill
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13
Out 08

A NOITE-VIÚVA

Uma pequena angústia sentida nos joelhos
Como o bater do próprio coração
E é a noite que chega
Não a noite-diamante
Mas a noite-viúva a noite
Sete vezes mais impura do que eu
Em passo obsceno em obscena força
Minúscula perversa venenosa

Escrevo o teu nome
Noite de amor que de longe me defendes
Escrevo o teu nome contra a noite obscena
Que a meu lado espera seduzir-me
Levar-me consigo
À porca solidão onde trabalha
À insónia sem margens ao vinho solitário
Duma pequena angústia
Escrevo todos os teus nomes
Puxo-os para mim tapo-me com eles
Na noite da surpresa
Noite feroz da surpresa
Noite do amor atacado de perto e conseguido
Alto e convulsivo
Noite dos amantes deslumbrados
Iluminados pelo demónio mais puro
Noite como uma punhalada ritual no invisível
Noite da vítima-triunfante

Escrevo o teu nome a meu favor e contra
Esta noite este murmúrio esta invenção atroz
A que chamam o dia-a-dia
Estas quatro minúsculas patas
Venenosas da angústia

Escrevo o teu nome cruel
Puro e definitivo.

Alexandre O'Neill
publicado por RAA às 23:33 | comentar | favorito