11
Set 18

ONDAS GRAVITACIONAIS: REGISTOS

Explodiram pelo espaço em rota para lá

da imaginação. Não se sabe de Deus

neste processo de fenda de universos

 

E as palavras hesitam-se,

paradas.

 

             Não se ouviu nada, nada foi visto

claramente visto, mas é o que se chama

nesta língua de nós, criada e aprendida

em formato de azul: registo

 

Ana Luísa Amaral, What's in a Name? (2017)

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14
Out 10

PASSOS DE VELUDO (título póstumo)

                                                                                                                                                                                                 Do not go gently into that good night
                                                                                                                                                                                                                                    Dylan Thomas

Não permitas que a noite se desabe,
habituada e negra. Antes confunde
as regras e as sombras que lhe obedecem,
cegas. Não descanses olhar sobre
o vazio, nem no silêncio seduzindo
em nada. Aqui: címbalo, pífaro, assobio,
ou tampas de barulho avesso à almofada.
Grita, blasfema, geme em timbre agudo,
mas não deixes a lua, com passos de veludo
entrar pela ombreira, sentar-se e conversar.
Nem lhe ofereças um lar de cabeceira
e penumbra doente. Argumenta-a de frente
e à seda roçagante dos seus passos;
numa filosofia de algibeira,
resiste-lhe o abraço cultivado. E rasga
a sua máscara ausente de suor. Não entres
docemente nessa noite. Não entres
tão depressa.

Ana Luísa Amaral
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13
Out 10

NAMORO DE ALDEIA

Duas horas e meia da manhã:
o trabalho que espera sossegado,
o cansaço do fogo na lareira,
a caneta riscando e o cantar do galo
estremunhado

Deve pensar que são seis horas, este galo,
e o meu trabalho em sono, o fogo que me fala,
uma unha roída,
um cigarro fumado,
o café a fazer e o poema desfeito
em só cadência

Que tema é este sério a esta hora
breve da manhã, com o trabalho à espera
e o fascínio do fogo?

Deve pensar que possui tema, este poema
que não me evita e me namora ousadamente
a desoras na aldeia

O fogo estala e outro galo canta
e o meu trabalho enjoa sossegado
No romance parado do meu poema e eu,
o café já saiu, começou a chover

Escorrem gotas macias no telhado,
o fogo morre, o trabalho desperta
abrindo um olho lento

e o meu namorado parvo e tonto
carregado de imagens (e de outras coisas leve)
sai furtivo a desoras

Só deixou por roer
a unha do polegar
da minha mão direita

Ana Luísa Amaral
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12
Out 10

AS ETERNAS MARGENS

                                                                                                                                                                                          À Margarida Losa

Um cedro te pensava.
Nunca faia,
ou sobretudo junco de ternura.
Mas de cedro: sempre sementes foram
a dar seiva aos amigos
e ao mundo.

Um cedro te pensava. Feito de força
e vento
-- ou vendaval.
Nunca faia de espanto
ou junco horizontal
onde horizonte: nada.

Um cedro. Uma pequena ponte alada,
força feita de tanto
e luz de solidez, onde a seiva
se faz de frente ao mundo,
a ela se ligando
a tua imagem.

Um cedro te pensava.
Se faia fores também,
ou frágil junco,
igual o coração.
E a sua eterna margem.

Ana Luísa Amaral
publicado por RAA às 10:45 | comentar | favorito
08
Out 10

E O SONO: SÓ MOMENTO

                                                                                                                                                                                                         Death thou shalt (not) die

A morte e nunca mais cheiros violentos
ou doces de algodão: gasolina ou o chão
de cera fresca, a terra de manhã,
a pele -- aquela, ou de pasta de escola.
A morte e nunca mais o sol feroz
da primavera em fim. O verde tão fecundo
e desabitual todos os anos. O gesto
humano e brando do amor. Carta de luz.
Olhar que se pendura por varanda
de pássaro minúsculo ou passeios
criando a arte em pedras reduzidas.
E nunca mais os poliedros lisos
dos teus olhos centrando-se nos meus.
A morte e nunca mais -- que está morta.
Só momentaneamente adormeceu.

Ana Luísa Amaral
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07
Out 10

HORA CREPUSCULAR

Só, na noite. O vazio do intrincado espaço
da memória, teia quase perfeita de finos
nervos. Como num bastidor, quebrou-se agulha,
rompeu-se o fio de seda, ou lã macia.
Ou foi só o crepúsculo que, dissonante, entrou?

Só, na noite, no vazio intrincado do pensar.
Mas, se brilho na teia? Se segundo qualquer crepuscular
à cabeceira, onde medicamentos
e pequenas flores? Que olhar nos é negado?
Alguém em limiar ou tempo ausente?

De encontro aos cobertores, que frio maior?
O frio nos fios da teia em desconserto. E rotos.
Mas, se alguma candeia de século passado,
o azeite a manchar o bastidor? Só, na noite.
Sem deuses, nem demónios. A teia a oscilar,

sem som.

Ana Luísa Amaral
publicado por RAA às 14:26 | comentar | favorito
06
Out 10

GRILOS EM QUINTA-FEIRA

Grilos ao longo de mil sons cinzentos.
Mas: grilos sempre e só.
Acima de mil sons: este, o dos grilos.
E a percepção assim se forma,
inteira. Ou, se assim o quisermos,
uma cadeira ao longo dos tijolos,
tantos tijolos. Mas são eles que fundem
o olho de aqui estar. Ou o luar
que se abandona inteiro por tantos
mil pigmentos de cantar. Porque
acima de todos (lua, cadeira,
ou até o olhar que se revê
em doce mascarada), são os grilos
que inventam: a noite um carnaval.
E a quinta-feira de mil cinzas:
nada.

Ana Luísa Amaral
publicado por RAA às 11:01 | comentar | favorito
30
Ago 10

ORIGINAIS

Repito tanta coisa por dentro da
cabeça. Roda a girar ao longo
de mil letras. Repetidas por dentro
da cabeça. Tanta coisa a girar

como pião, ou verso de criança.
Canção que como roda, ou de roda
já não. Por dentro da cabeça, o
verso é fácil. Produzi-lo depois,

refazer coisas, as mesmas re-
petidas por dentro da cabeça.
A arte do copista por serão.
A arte do poeta, que já não.

Que foi, antes de tudo, repe-
tido. Quando o original:
salteador, bandido. Tudo,
menos vulgar ladrão.

Ana Luísa Amaral
publicado por RAA às 16:56 | comentar | favorito
03
Ago 10

RITMOS

E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
Misturar ritmos em teia apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém.

De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
Ah! hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!

As irmãs recuperadas ainda em anos 20,
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfoses em
refogados rítmicos

(Debaixo do fogão
só o silêncio frio)

Ana Luísa Amaral
publicado por RAA às 16:19 | comentar | favorito