06
Jan 16

APELO

Pedido de socorro (onde estou eu?)

lançado ao mar numa garrafa escura.

À minha beira fica a sepultura;

dentro repousa o corpo que foi meu.

 

Aves de agoiro, a vida como é dura!

Tão pouco azul o derradeiro céu!

O vento norte alastra o claro véu

e esconde aos olhos a nudez impura.

 

Ah, sol de Junho!, ao menos és real:

teus finos dedos, alongados, tersos

retratam-me em tamanho natural.

 

Outro sinais ficam de mim dispersos

por sobre a água funda e o areal.

 

No bojo da garrafa vão só versos.

 

Daniel Filipe, in As Folhas de Poesia Távola Redonda

(esição de António Manuel Couto Viana)

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20
Jan 15

REGRESSO

A rua é ainda a mesma. As mesmas flores,

o mesmo sol que nada nos recorda.

O mesmo sonho triste e papa-açorda

em que se esvaem as humanas dores!

 

Nada mudou nestes dois anos. Só

tua casta presença me falece.

Relembro, a medo, a solitária prece,

que o teu vulto sereno me ensinou.

 

Tão pouco peço, Deus! Entanto, os dias

começam e acabam como outrora...

Na velha casa, uma outra virgem mora;

alguém relê os livros que tu lias!

 

A blusa que vestias -- verde-mar,

como a recordo! -- era um segredo esquivo,.

Hoje é outra que a veste em teu lugar,

com o mesmo modo álacre, rubro, vivo!

 

Nada mudou. O mesmo sol, a rua

onde outrora, calados, nos olhámos,

o piano subtil, os mesmos ramos

de roseira silvestre...

                                                -- Só a tua

casta presença grácil se perdeu:

doce lembrança musical, alado

e húmido olor de maresia -- véu

que envolve este retorno inesperado.

 

Daniel Filipe, A Ilha e a Solidão (1957)

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban I

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28
Out 14

SECA

É de água a sede da paisagem

que o som da música enlanguesce.

Pedem meus olhos a miragem

de branca nuvem, fria aragem

-- virgem morena que adolesce.

 

É de água a sede deste monte

em sal e areia acontecido.

Venha a ternura de uma fonte!

Lírico som que em mim desponte

e saiba a céu e a ter vivido.

 

Daniel Filipe, A Ilha e a Solidão

(in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban I, 1975)

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29
Set 14

MORNA

É já saudade a vela, além.

Serena, a música esvoaça

na tarde calma, plúmbea, baça,

onde a tristeza se contém.

 

Os pares deslizam embrulhados

de sonhos em dobras inefáveis.

 

(Ó deuses lúbricos, ousáveis

erguer então, na tarde morta

a eterna ronda de pecados

que ia bater de porta em porta!)

 

E ao ritmo túmido do canto

na solidão rubra da messe,

deixo correr o sal e o pranto

-- subtil e magoado encanto

que o rosto núbil me envelhece.

 

Daniel Filipe, A Ilha e a Solidão,

 

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban I

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21
Jul 14

PREIA-MAR

As ondas quebram na areia,

dizem segredos perdidos...

Saudades da maré-cheia,

de barcos e tempos idos...

 

Segredos tristes, lamentos,

que o mar não pôde calar...

E foi dizê-los aos ventos,

aos pescadores, ao luar...

 

As ondas dizem na areia

saudades de tempos idos...

Segredos da maré-cheia,

de barcos tristes

                          -- perdidos...

 

Daniel Filipe,

in Manuel Ferreira,

No reino de Caliban I

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31
Jan 11

CANTO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA (3)



Não fora o grito a faca
de súbito rasgando
a fronteira possível
Não fora o rosto   o riso
a serena postura
do cadáver na praia

Não fora a flor a pétala
recortada em vermelho
o longínquo pregão
o retrato esquecido
o aroma da pólvora
a grade na janela

Não fora o cais   a posse
do nocturno segredo
a víbora   o polícia
o tiro   o passaporte
a carta de paris
a saudade da amante

Não fora o dente agudo
de nenhum crocodilo

Não fora o mar tão perto
Não fora haver traição

Daniel Filipe
publicado por RAA às 23:54 | comentar | favorito
23
Nov 10

ROMANCE DE TOMASINHO-CARA-FEIA

Farto de sol e de areia,
que é o mais que a terra dá.
Tomasinho-Cara-Feia,
Vai prà pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortuna, a mãe,
que é velha e não tem ninguém,
chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho-Cara-Feia,
(outro nome, quem lho dá?)
farto de sal e de areia,
foi prà pesca da baleia.

-- E nunca mais voltará.

Daniel Filipe
publicado por RAA às 14:25 | comentar | favorito
19
Nov 10

ILHA

No azul líquido é somente
um ponto anónimo da carta.
Ó minha fala inconsequente!
Saudade morna do ausente,
distante ainda que não parta!

O horizonte é linha de água
por estrelas-peixe enodoada.
Se me recorto em bruma e mágoa,
à solidão da ilha trago-a
dentro de mim petrificada.

Daniel Filipe 
publicado por RAA às 14:17 | comentar | favorito
16
Set 10

CÂNTICO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA

9.

Mas há a noite. O estar sozinho
e no entanto acompanhado -- servo de um deus estranho
cumprindo o ritual jamais completo.

Mas há o sono. A lúcida surpresa
de um mundo imaterial e necessário,
com praias onde o corpo se desprende.

Mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
suor nocturno, rápido suicídio.

Daniel Filipe
publicado por RAA às 19:30 | comentar | favorito