30
Out 11

NATAL À BEIRA-RIO

É o braço do abeto a bater na vidraça?

E o ponteiro pequeno a caminho da meta!

Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,

a trazer-me da água a infância ressurecta.

 

Da casa onde nasci via-se perto o rio.

Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!

E o Menino nascia a bordo de um navio

que ficava, no cais, à noite iluminado...

 

Ó noite de Natal, que travo a maresia!

Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.

E quanto mais na terra a terra me envolvia

mais da terra fazia o norte de quem erra.

 

Vem tu, Poesia, vem agora conduzir-me

à beira desse cais onde Jesus nascia...

Serei dos que afinal, errando em terra firme,

precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

 

David Mourão-Ferreira 

publicado por RAA às 23:05 | comentar | favorito
23
Out 11

DE AVIÃO

Certos ficamos

de céu azul

 

só se voando

por sobre as nuvens

 

David Mourão-Ferreira

publicado por RAA às 23:33 | comentar | favorito
19
Set 11

...

A sedução está para a rendição
como a flor para o fruto.
(Quanta flor sem fruto!)

David Mourão-Ferreira
publicado por RAA às 22:58 | comentar | favorito
20
Ago 11

CONTRAPONTO

Vestido negro,
cinto vermelho.

Luto precoce
da tua carne!

Nele se enlaça
o meu desejo.

Vestido negro?
Cinto vermelho!

David Mourão-Ferreira 
publicado por RAA às 13:11 | comentar | favorito
27
Out 10

PENUMBRA

Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta      nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

David Mourão-Ferreira
publicado por RAA às 11:07 | comentar | favorito
15
Out 10

INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS

Mal fora iniciada a secreta viagem,
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que o deus me segredou.

David Mourão-Ferreira
publicado por RAA às 22:53 | comentar | favorito
14
Set 10

PRESÍDIO

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

David Mourão-Ferreira
publicado por RAA às 16:47 | comentar | favorito
16
Fev 10

CERTIDÃO DE NASCIMENTO

Tão regaço estas arcadas
Tão de brinquedo os eléctricos
Vejo a cidade parada
no ano de vinte e sete
Dela por vezes me evado
mas sempre a ela regresso
Bem sei eu que não desato
o cordão com que me aperta
Vejo seus gestos de grávida
medidos cautos emersos
nessa jovem gravidade
que só grávidas conhecem
Que frescor de madrugada
no terror com que me espera
Mas têm sempre a idade
que em sonho os filhos decretam
Recordo melhor a data
Até mesmo a atmosfera
É o dia vinte e quatro
de um mês a tremer de febre
com armas grades e o rasto
de um sangue que nunca seca
Só seis decénios passaram
rápidos como seis séculos
Tão pouco Mas neles cabem
cidades arcadas eléctricos
nesta imensa claridade
irmã gémea do mistério

David Mourão-Ferreira
publicado por RAA às 03:24 | comentar | favorito
18
Mar 09

ÍNTIMO NATAL

Nunca um Natal me aturdira
com tão grande maravilha

Ó perspectiva de vida
que à vida me sobreviva

Um neto ou neta respira
no ventre de minha filha

1978.
David Mourão-Ferreira
publicado por RAA às 18:35 | comentar | favorito