23
Jan 15

POEMA

Havia um menino

que tinha um chapéu

p'ra pôr na cabeça

por causa do Sol:

em vez de um gatinho

tinha um caracol

tinha um caracol

dentro do chapéu.

Fazia-lhe cócegas

no alto da cabeça,

por isso ele andava

depressa, depressa,

p'ra ver se chegava

a casa e tirava o chapéu,

saindo

de lá e caindo

o tal caracol.

Mas era, afinal,

impossível tal,

nem fazia mal

nem vê-lo, nem tê-lo

porque o caracol

era de cabelo!

 

Fernando Pessoa,

in Maria de Lourdes Varanda & Maria Manuel Santos,

Poetas de Hoje e de Ontem

do Século XII ao XXI

para os Mais Novos

publicado por RAA às 13:14 | comentar | favorito
28
Out 14

NO COMBOIO DESCENDENTE

No comboio descendente

Vinha tudo à gargalhada,

Uns por verem rir os outros

E os outros sem ser por nada

No comboio descendente

De Queluz à Cruz Quebrada...

 

No comboio descendente

Vinham todos à janela,

Uns calados para os outros

E os outros a dar-lhes trela

No comboio descendente

De Cruz Quebrada a Palmela...

 

No comboio descedente

Mas que grande reinação!

Uns dormindo, outros com sono,

E os outros nem sim nem não

No comboio descendente

De Palmela a Portimão...

 

Fernando Pessoa,

in Poetas de Hoje e de Ontem

-- do Século XIII ao XXI

para os mais novos

(edição: Maria de Lourdes Varanda

& Maria Manuela Santos)

publicado por RAA às 18:32 | comentar | favorito
01
Jul 13

GAZETILHA

Dos Lloyd Georges da Babilónia

Não reza a história nada.

Dos Briands da Assíria ou do Egito,

Dos Trotskys de qualquer colónia

Grega ou romana já passada,

O nome é morto, inda que escrito.

 

Só um parvo dum poeta, ou um louco

Que fazia filosofia,

Ou um geómetra maduro,

Sobrevive a esse tanto pouco

Que está lá para trás no escuro

E nem a história já historia.

 

Ó grandes homens do Momento!

Ó grandes glórias a ferver

De quem a obscuridade foge!

Tratem da fama e do comer,

Que amanhã é dos loucos de hoje!

 

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos,

presença #18, Coimbra, 1929

publicado por RAA às 18:51 | comentar | favorito
12
Fev 13

"Pensar em Deus é desobedecer a Deus,"

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,

Porque Deus quis que o não conhecêssemos,

Por isso se nos não mostrou...

 

Sejamos simples e calmos,

Como os regatos e as árvores,

E Deus amar-nos-á fazendo de nós

Belos como as árvores e os regatos,

E dar-nos-á verdor na sua Primavera,

E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

 

Fernando Pessoa 

Poemas de Alberto Caeiro

edição de António Quadros

publicado por RAA às 00:25 | comentar | ver comentários (4) | favorito
24
Jan 13

O DOS CASTELLOS

A Europa jaz, posta nos cotovellos:

De Oriente a Occidente jaz, fitando,

E toldam-lhe românticos cabellos

Olhos gregos, lembrando.

 

O cotovello esquerdo é recuado;

O direito é em angulo disposto.

Aquelle diz Italia onde é pousado;

Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se appoia o rosto.

 

Fita, com olhar sphyngico e fatal,

O Occidente, futuro do passado.

 

O rosto com que fita é Portugal.

 

8-12-1928


Fernando  Pessoa

Mensagem

publicado por RAA às 00:30 | comentar | favorito
07
Out 12

CHUVA OBLÍQUA (II)

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,

E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

 

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,

E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

 

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes

Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça

E sente-se chiar a água no facto de haver coro...

 

A missa é um automóvel que passa

Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...

Súbito vento sacode em esplendor maior

A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo

Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe

Com o som de rodas de automóvel...

 

E apagam-se as luzes da igreja

Na chuva que cessa...

 

Fernando Pessoa

publicado por RAA às 23:49 | comentar | ver comentários (2) | favorito
10
Fev 12

ODE

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

 

Ricardo Reis

(Fernando Pessoa)

publicado por RAA às 15:54 | comentar | favorito
21
Jun 11

MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram!
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar,
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa
publicado por RAA às 11:31 | comentar | favorito
26
Abr 11

HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o longe, e o sul sidéreo
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa de longínqua costa --
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe e abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte --
Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa
publicado por RAA às 17:44 | comentar | ver comentários (2) | favorito
19
Jan 11

O PENÚLTIMO POEMA

Também sei fazer conjecturas.
Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.
No animal é um ser interior e longínquo.
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
E o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma coisa que o corpo.
Por isso se diz que os deuses nunca morrerm.
Por isso os deuses não têm corpo e alma
Mas só corpo e são perfeitos.
O corpo é que lhes é a alma
E têm a consciência na própria carne divina.

Alberto Caeiro
publicado por RAA às 12:11 | comentar | favorito