01
Out 18

"A perda do amor é sempre dano,"

A perda do amor é sempre dano,

sente-se que alguma coisa foi

pelo cano abaixo, mas o amor tem

a coisa de poder voltar. Às vezes

não volta ou então é apenas

fingimento, não passa de uma

cadeira onde nos podemos sentar.

 

Helder Moura Pereira, Golpe de Teatro (2016)

publicado por RAA às 13:18 | comentar | favorito (1)
05
Ago 18

"Meu Deus, o que as pessoas guardam."

Meu Deus, o que as pessoas guardam.

Transportam a memória das casas,

dizem que não querem mas transportam

a memória das casas. Imagens de coisas

concretas, sim, mas também muitas

coisas concretas. Sapatos que já não

se calçam, casacos que já não se põem.

Música que ouviram pouco, porque

pode ser que haja, enfim, tempo.

E música que ouviram muito, porque

sabe bem ouvir a música que ouviram

muito. Resmas de papel antigo, porque

qualquer vida dá um romance.

 

Helder Moura Pereira, Golpe de Teatro (2016)

publicado por RAA às 01:27 | comentar | favorito
26
Abr 12

"Ternos amadores caminhavam"

Ternos amadores caminhavam

no caminho que ia dar ao ponto

mais alto da serra, desapareceram

na luz do sol, davam e tiravam

as mãos, vestiam de maneira quase

igual pelo azul do mar. Espião

apenas do suspeito? Também os

pássaros, os arbustos um pouco

inclinados ao vento, as conchas

calcinadas, mistura de cheiros

bons. Os espinhos secos cravavam-se

nas pernas, vi o que não vi, a

ofegante respiração, o alegre

final. Distante da ameaça e do

perdão deixem-me entrar nesse jogo,

apenas mais um.

 

Helder Moura Pereira

publicado por RAA às 01:42 | comentar | favorito
02
Nov 10

...

Que podes dizer quando no engano
souberes que não há dádiva sem vantagem,
utilidade sem mágoa? As palavras
esperavam-te, era por mim que lutava,
um passo em falso e logo outro, noites
adivinhando ao longe o delírio, as luzes
voltadas para um rosto que as não
queria, lágrima numa chantagem, um
pouco de carinho, o resultado final
do precário sossego. Que posso dizer
quando houver inusitada calma,
a tranquilidade dos que preparam
com o seu cuidado a divisão
da hipocrisia? Que só de fúrias
vivemos, só de arriscados lances.

Helder Moura Pereira
publicado por RAA às 23:06 | comentar | favorito
18
Ago 10

...

Trovoa na minha cabeça, mas o médico
diz que não é nada. Ecoam vibrações
nos meus pulsos, linhas trocadas no pescoço.
Só pode ser por tua causa, ser desconhecido.
Que me invades carro, casa e coração.
Comboio, táxi, local de trabalho.
Quarto, sala, cozinha, televisão.

Reconheço a penumbra desta garagem
onde vens pôr o carro diariamente.
Marquei as tuas horas na minha memória
e quando à hora certa sinto o barulho
do teu escape atrapalham-se-me as mãos
nas chaves e desengato do porta-chaves
o emblema do carro. Tanto nervosismo
é real? Bom dia, digo, e são já dezanove
e quarenta e cinco, um quarto para as oito.

O teu cansaço é real. Pões agora numa casa
ritmos fáceis, não obedecem a qualquer
contradição, fazem-se porque têm
de se fazer, se tu não os fizeres
quem os fará? Somos dois burros
a lutar cabeça com cabeça, as malhas
do amor enredaram-nos de tal forma
que nos parece tragédia ter um corpo.

Ainda assim te espero como se fosses
um ser desconhecido, para quem eu
preparasse um jantar especial. E repito
a velha imagem de filmes, peças
de teatro, vida real, mostrando o tempo
a passar e a mesa posta para dois.

Vai começar a terceira série do Prison
Break, aproveito a publicidade
institucional para abrir a garrafa,
fatiar a carne. Acendo a vela e ponho
o guardanapo nos joelhos, estou só,
ninguém veio, Quincy Jones tocou
este tempo todo, acompanhado
por uma grande orquestra cheia de estrelas.

Helder Moura Pereira
publicado por RAA às 10:44 | comentar | favorito