17
Set 11

CIDADE DE SEGREDOS

Quando a cidade escurece
e um toldo de noite a envolve,
o silêncio traz em si
os mais profundos lamentos,
o ruído de estertor dos que chegam ao fim,
os soluços de amor dos que agora começam,
os passos perdidos pelas ruas solitárias
de luz citrina nas janelas da espera.
É sempre o corpo o centro da madrugada.
Vou ver o meu filho que dorme serenamente
enquanto um motor de carro abranda
na hora do sono dos noctívagos e dos boémios.
Sento-me e contemplo ao longe a Basílica da Estrela
num diálogo de pedra secreto com os
últimos luzeiros, com o rumos da alvorada

João Candeias
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17
Ago 11

GENEALOGIA

Desconheço as palavras que os antepassados
proferiram, na genealogia celular da reprodução.
Imagino-os a balbuciar estranhos sentimentos
junto aos muros das casas nubladas de memória.
Observar o perfil dos mais recentes frutos
dessa árvore cujas raízes se perdem
no subsolo da transfiguração.
Descobrir semelhanças, prever diferenças que só
o seio da terra guarda na sua eternidade de segredos.
Aqui estamos, parentes próximos e longínquos
sujeitos à ditadura dos códigos genéticos.
E também dos vermes que descodificam na terra
a indiferença dos que hão-de suceder-nos

João Candeias
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20
Jan 11

AS PALAVRAS MANSAS

o limiar do sonho traz as palavras mansas
como a argila breve salivada e branda.
levemente sob a timidez do bosque d'água
o amor irrompe do limiar da infância.

mas nós estamos sós junto à fonte da memória.
as crianças cantam como mel sobre as ramagens
na recordação do fogo mágico da aurora
a canção do mundo transversal que quis ser puro

como um ninho de argila salivada e branda

João Candeias
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15
Jan 11

ESTE É O LUGAR

1

a lança aponta sobre o mar o seu dedo
de rocha sedimentar. os gaviões da memória
dormem nas falésias vivas, e um cão, o cão
que sempre uiva no calafrio dos presságios
recorta-se contra a lua.
nada sabemos da benignidade ou dos malefícios
de aqui estar, nem sabemos o que de primordial
acaba ou começa na urgência da História.
este é o lugar onde o mar acaba e a saudade começa.
longe é o berço do mar, no bojo de uma nau
em que a pimenta e o gengibre enaltecem glórias imorredoiras.
ó noite que guardas nos teus recantos
uma esperança que é só nossa, a da terra em expansão
para o coração das gentes, agora que cessaram
alfanges e bombardas e ficou sangue, esse sangue
com que marcámos o rosto e a alma do mundo.
morreu o império, todos os impérios morrem.
desmoronam-se todos os impérios, à boca
do terceiro milénio, e a palavra pára,
suspende-se meditativa, olha o passado
abandona o seu séquito de fantasmas e, no instante
do último alento, vislumbra a esperança
de um novo universo a descobrir
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10
Jan 11

MARGENS

1

o silêncio distende-se em
sombra. por toda a casa.
a praia expande constante
o seu murmúrio.
o mar pertence à permanente
paisagem do silêncio

João Candeias
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02
Jan 11

MELANCOLIA

não tentes os meus cuidados. procura nestes gestos
o obscuro caudal das renúncias. sabes, como eu sei
os limites de sombra desta casa.
sobre a mesa dormem pêssegos incendiados
e um vago olor a ternura desvanece-se sob o coração.
ficaram longe as marés do nosso olhar
enquanto cresciam as arribas da melancolia.
que importam as planícies movediças da memória
o alvoroço dos olhos com que nos descobrimos
e os sóis com que nos cegámos de aventuras?
que importa agora a água de tanta sede comum
o frescor da efémera alegria?
não me procures na hora da deserção, enquanto
vou roubar ao tempo os derradeiros portos
últimos passos, uma brisa de gaivotas e de névoa

João Candeias
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17
Set 10

Voz Descontínua

autor: João Candeias (Quelimane, 1949)
título: Voz Descontínua
subtítulo: Antologia Mínima
colecção: «The Impossible Papers»
edição: Black Son Editores
ano: 2002
págs.: 38
dimensões: 17,5x13,5x0,3 cm. (brochado)
impressão: Graficar, Carvalhos
capa: Ana Candeias, sobre ilustração do livro Apocaliypsse, de Enrico Baj
tiragem: 350 exemplares
observações: dedicatória do Autor
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31
Ago 10

AÇÚCAR

expectativa: um pouco da angústia que o licorne
retém. os primeiros passos sobre um vasto átrio
onde se guardavam rosas mornas como lábios.
os mesmos que diziam: «é na alegria que se
constroem ninhos, aqueles que a vida vive
no conforto dos breves sentires. no amor a branda
safra das formigas, como o abraço com que me acolhes».
junto às rosas um açucareiro azul com casinhas doces
e licor dentro, magenta, alguns duendes dormem
sobre cogumelos coloridos.
os primeiros passos foram de açúcar

João Candeias
publicado por RAA às 19:36 | comentar | favorito
21
Ago 08

"EL SORDO" *

na noite dos tormentos, nessa noite
em que os fantasmas deambulavam
pelo coração, olhou as paredes nuas
cegou-se de branca ausência, tamanho
cerco, e abriu janelas ao silêncio:
pintou terror, inferno, eternidade.
sonhara o sonho da razão
e o seu testamento escorreu lesto
pelos olhos da solidão.
aí, porque ouvira de novo o mundo
produziu monstros, como seria de esperar
do mundo


*(Goya)

João Candeias
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