05
Fev 14

"-- Não era ninguém. A água."

-- Não era ninguém. A água. -- Ninguém?

Pois não é ninguem a água? -- Não

há ninguém. É a flor. -- Não há ninguém?

Mas não é ninguém a flor?

 

-- Não há ninguém. Era o vento. -- Ninguém?

Não é o vento ninguém? -- Não

há ninguém. Ilusão. -- Não há ninguém?

Não é ninguém a ilusão?

 

Juan Ramón Jiménez,

Antologia Poética

(trad. José Bento)

 

 

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25
Nov 13

"Sou eu quem anda esta noite"

Sou eu quem anda esta noite,

pelo meu quarto, ou o mendigo

que rondava o meu jardim

ao cair da tarde?...

Fito

tudo em redor e encontro

que o mesmo é, mas distinto...

A janela estava aberta?

Eu não tinha adormecido?

O jardim não estava verde

de luar?... E o céu límpido

e azul... Há vento e nuvens

no jardim ora sombrio...

A minha barba era negra...

De claro eu estava vestido...

Minha barba agora é branca,

estou de luto. Vai comigo

meu andar? Tem esta voz

que ressoa em mim os ritmos

da voz que eu tinha?

Sou eu, ou sou o mendigo

que rondava o meu jardim

ao cair da tarde?...

Fito

em redor... Há vento e nuvens...

O jardim está sombrio...

 

...E vou e venho... É que eu

não havia adormecido?

A barba está branca... E tudo

é o mesmo e é distinto...

 

Juan Ramón Jimenez,

Antologia Poética

trad: José Bento

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17
Jun 13

ADOLESCÊNCIA

Na varanda, um instante

ficámos os dois sós.

Desde aquela manhã

tão doce, éramos noivos.

 

-- Sonolenta, a paisagem

dormia em vagos tons

sob o céu gris e rosa

do poente de outono --.

 

Disse que ia beijá-la;

baixou, serena, os olhos

e ofereceu-me as faces

como perdendo um tesouro.

 

-- Caíam folhas mortas

no jardim silencioso,

e no ar errava ainda

um olor de girassóis --.

 

Não se atrevia a olhar-me;

disse eu que éramos noivos,

... e as lágrimas rolaram-lhe

dos olhos melancólicos.

 

Juan Ramón Jimenez,

Antologia Poética

trad.: José Bento 

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06
Dez 10

IDÍLIO MORTO

Que fará a esta hora a minha andina e meiga Rita
de junco e capulim;
agora que me asfixia Bizâncio e que dormita
o sangue, como débil conhaque, dentro em mim.

Onde estarão suas mãos que em posição contrita
engomavam nas tardes uma brancura ainda por ver;
agora, nesta chuva que me evita
o gosto de viver.

Que será de sua saia de flanela; de seus
trabalhos; seu andar;
do seu sabor a canas de maio do lugar.

Há-de estar à sua porta, olhando o céu nublado,
e a tremer dirá: «Oh que frio... meu Deus!»
E um pássaro selvagem chorará no telhado.

Cesar Vallejo

(José Bento)
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01
Out 10

...

Como vive essa rosa que prendeste
junto ao teu coração?
Nunca até hoje contemplei no mundo
uma flor sobre um vulcão.

Gustavo Adolfo Becquer

(José Bento)
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27
Set 10

DA ROSA

A rosa
não procurava a aurora:
quase eterna em seu ramo,
procurava outra coisa.

A rosa
não procurava ciência ou sombra:
confim de carne e sonho,
procurava outra coisa.

A rosa
não procurava a rosa:
imóvel pelo céu
procurava outra coisa.

Federico García Lorca

(José Bento)
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05
Set 10

A MARÍA ANTONIA DANS, NA GALIZA

1

Este cansaço, este rumor,
esta indiferença secular,
estes corpos afastados,
esta saudade sem podar
que cresce e cresce e dá flores
pardas de tédio -- vizinhança
das pradarias e do ácer,
do granito e do mar --,
estes caminhos e estes montes
onde a luz e o animal
vão em silêncio, caminhando
sempre com passo igual;
estas choupanas habitadas
por fumo e homens, esta paz
acostumada a este costume
de falar para calar;
e estes veleiros e estas redes
de içar vazias, de pescar,
de guardar as ovas
e curti-las no sal,
dormem -- verdade? -- nos teus quadros
ou irão despertar?

Angel Crespo

(José Bento)
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26
Jul 10

OS ARAUTOS NEGROS

Há pancadas tão fortes na vida... Eu sei lá!
Pancadas como do ódio de Deus; como se sob elas
a ressaca de todo o sofrimento
estagnasse na alma... Eu sei lá!

Poucas; mas acontecem... Abrem leivas escuras
no rosto mais duro e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de átilas selvagens;
ou os arautos negros que nos envia a Morte.

São as profundas quedas dos Cristos da nossa alma,
de uma fé adorável que o Destino blasfema.
Tais pancadas sangrentas são as crepitações
de um pão que na porta do forno se nos queima.

E o homem... Pobre... Pobre! Volta os olhos, como
quando sobre o seu ombro uma palmada o vem chamar;
volta seus olhos loucos, e todo o já vivido
como um charco de culpa estagna em seu olhar.

Há pancadas na vida tão fortes... Eu sei lá!

Cesar Vallejo

(tradução de José Bento)
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