12
Mar 18

MORTE E TRANSFIGURAÇÃO

Cinzas, vergões, renúncias, cicatrizes,

Laceram-nos a esperança, mas dão outra.

Essa em que a dor nos faz criar raízes,

Árvore e fruto duma seiva nova.

 

Dos abismos da ira levantamos

As vozes, os protestos e as trombetas.

Só nos ouvimos quando nos calamos

E em vez de arautos nos tornamos poetas.

 

Cantores das coisas que nos doem, magos

Da nossa angústia, frémito das águas

Onde nos debruçamos, onde nós,

 

Narcisos do que é grande e impossível,

Nos transformamos por amor da voz

Enquanto a imagem nos parece inútil.

 

José Carlos Ary dos Santos, A Liturgia do Sangue (1963)

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14
Mar 15

DA CONDIÇÃO HUMANA

Todos sofremos.

O mesmo ferro oculto

Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.

O mesmo sal nos queima os olhos vivos.

Em todos dorme

A humanidade que nos foi imposta.

Onde nos encontramos, divergimos.

É por sermos iguais que nos esquecemos

Que foi do mesmo sangue,

Que foi do mesmo ventre que surgimos.

 

José Carlos Ary dos Santos, 

A Liturgia do Sangue / Obra Poética

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08
Mar 15

SONETO

Fecham-se os dedos donde corre a esperança,

Toldam-se os olhos donde corre a vida.

Porquê esperar, porquê, se não se alcança

Mais do que a angústia que nos é devida?

 

Antes aproveitar a nossa herança

De intenções e palavras proibidas.

Antes rirmos do anjo, cuja lança

Nos expulsa da terra prometida.

 

Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,

Antes o olhar que peca, a mão que rouba,

O gesto que estrangula, a voz que grita.

 

Antes viver dos que morrer no pasmo

Do nada que nos surge e nos devora,

Do monstro que inventámos e nos fita.

 

José Carlos Ary dos Santos,

Liturgia do Sangue / Obra Poética

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19
Nov 14

IN MEMORIAM

Requiem aeternum dona eis,

                                                                                                                                                                           

Domine, et lux perpetua

                                                                                                                                                                                          luceat eis.»

 

Que a terra lhe seja pesada.

Que lhe apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos,

Se lhe soltem os dentes e a fome fique intacta

E a alma, se a tiver, que lha fustigue o vento

E arrase com ela a memória gravada

Na lembrança demente dos que o choram.

 

Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,

Cheio de ossos e uivos

E garfos aguçados

E que reparta o medo com o primeiro intruso

E o vento se insinue pelas portas fechadas

E rasteje no quarto

E suba pela cama

E lhe entre no olhar como estiletes de aço

Lhe penetre os ouvidos como agulhas de som,

Lhe emaranhe os cabelos como um nó de soluços,

Lhe desfigure o rosto como um ácido em chama.

 

Que a mulher que foi dele oiça o vento na noite,

Que a mulher que foi dele oiça o vento na cama!

 

Que o nome que era o seu o persigam os ecos,

O gritem no deserto as gargantas com sede,

O murmurem no escuro os mendigos com frio,

O clamem na cidade as crianças com fome,

O soluce o amante de súbito impotente,

O maldigam no exílio as almas sem descanso

 

Que o nome que era o seu seja a bandeira negra,

A pálpebra doente,

O vómito de sangue..

 

Que o gesto que era o seu o imitem as mães

Que se torcem de dor quando abortam nas trevas,

O desenhem a lume os braços amputados,

O perpetue o esgar dos jovens mutilados,

O dance o condenado que morre na fogueira.

 

Que o gesto que era o seu seja o punhal do louco

A arma do ladrão

A marca do vencido.

 

Que o sangue que era o seu seja o rictus da tara,

A máscara de sal,

A vingança do pobre.

E que o Exterminadsor, no seu trono de enxofre,

O faça tilintar os guizos da tortura

Até que o mundo o esqueça

E mais ninguém o chore.

 

José Carlos Ary dos Santos, A Liturgia do Sangue (1963) /

/ Obra Poética

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24
Nov 10

INTRÓITO

Das tuas mãos de vidro, carregadas
De jóias tilintantes e doentes,
Das palavras que trazes afogadas,
Das coisas que não dizes mas entendes.

Do teu olhar virado às madrugadas
De fantásticos e exóticos orientes,
Do teu andar de tule, das estocadas
Dos gestos que não fazes mas sentes.

Dos teus dedos sinistros, de tão brancos,
Dos teus cabelos lisos, de tão brandos,
Dos teus lábios azuis, de tanta cor,

É que me vem a fúria de bater-te,
É que me vem a raiva de morder-te,
Meu amor! Meu amor! Meu amor!

José Carlos Ary dos Santos
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22
Out 10

Obra Poética

autor: José Carlos Ary dos Santos (Lisboa, 7.12.1936 - 18.1.1984)
título: Obra Poética
organização e notas: Francisco Melo
editora: Edições «Avante!»
local: Lisboa
ano: 2002
edição: 6.ª (1.ª, 1994)
capa: Colectivo das Edições «Avante!»
págs.: 451
dimensões: 21,8x15,3x2,9 cm. (cart.+sobrecapa)
impressão: SIG - Sociedade Industrial Gráfica
obs.: inclui juvenília (Asas, de 1952)
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20
Jul 10

QUEIXA E IMPRECAÇÕES DUM CONDENADO À MORTE

Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.


Passo a passo os encontro no caminho
Que os Deuses e o sangue me traçaram.
E negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram
Com angústia e com lama.


Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.


Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.


Sou eu que me chamo nas vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu que me corto a mim mesmo no pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.


Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.


Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.


Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.


Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
De serem inúteis e ficarem vivos.

José Carlos Ary dos Santos
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07
Set 08

MINHA MÃE QUE NÃO TENHO

Minha mãe que não tenho meu lençol
de linho de carinho de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.

Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que eu não oiço ai mãe ai mel
da flor do corpo que me traz à míngua.

De que Egito vieste? De qual Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mãe minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.

Minha mãe que não tenho minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila virgem buda corça
ou apenas um mundo em que não entro?

Minha mãe que não tenho inventa-me primeiro:
constrói a casa a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.

José Carlos Ary dos Santos
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