14
Nov 11

BERNARDO SOARES

Nenhuma fotografia fará subir a chama

da paisagem para lá da janela do terceiro

andar deste prédio. O real é uma abstracção

inútil, uma eternidade a que tivessem

 

cortando a sua face de sonho, um coração

onde nada pesa que não seja o peso

leve dos sentidos. A vida toda é este mover

das coisas mais próximas, os ombros

 

a bússola de viagem o desenho a tinta-da-china

de pequenos barcos coloridos

algumas vozes longínquas que logo fazem

viver as suas formas substantivas: pobre

 

de quem vê o que seus olhos vêem. Às vezes

é como se tudo tivesse uma alma um

destino superior às vogais do seu nome

um espaço onde a eternidade vem para morrer.

 

José Carlos Barros

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13
Out 11

DO QUE A VIDA PODERIA TER SIDO

Os amigos juntam-se e falam do passado,

da música que já não se ouve na rádio,

do inverno em que choveu semanas a fio

e o rio saiu das margens para desenhar

 

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos

da idade. Eles sabem para si mesmos que falam

do que nunca existiu: das mulheres

que se renderam para sempre às palavras do amor,

 

das perdizes caindo de asa nas encostas

iluminadas da urze, das corridas memoráveis

do vinte e cinco de abril, das tardes de domingo

que haveriam de envergonhar a uefa

 

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios

dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos

falam: do que a vida poderia ter sido

se não fosse a filha da puta da vida que foi.

 

José Carlos Barros

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07
Jan 11

AS PÁGINAS DOS ROMANCES

Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:

as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados

à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios

do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.

José Carlos Barros 
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