MODERNA IDADE (CONVERSA INACABADA)
Havia cartas, alucinantes cartas
com o desespero dos homens dentro.
Dois homens dois: Paris / Lisboa; Hotel Nice
quarto interior por cima de uma leitaria;
maços de definitivos queimados junto
ao mata borrão; o Arco do Triunfo; os gases
da guerra, primeira dita a grande; a tradução
comercial no exacto inglês de quem morre
ferido talvez de desvairado exílio
no centro geométrico de si mesmo.
Dois homens ou mais em pessoa (Pessoa);
as cartas, irremediáveis cartas
cumprindo a distância que une as escritas,
separa os homens e o veneno lento de um
bagaço somado a uma fatal, total lucidez.
Ainda e sempre as cartas amarrando os homens
à demolidora narração deles próprios e todavia
à persistente busca da luz.
As cartas irrespondíveis, mas sempre
com resposta, dupla voz que conta,
fere, descarna e revela em papel timbrado
de escritório sombrio da baixa lisboeta
um ofício de chagas chamado: modernidade.
José Jorge Letria,
in Cadernos Despertar #1 (1982)