23
Ago 18

GUARDA REPUBLICANA A CAVALO

Tu ladeavas o cavalo, rindo

da tua tão perfeita novidade.

Qual amazona de um destino findo,

o tempo não mudava a tua idade.

 

A pistola exibias sob a coxa

e do meu desejo tua troça ria.

Enredado na lírica mais frouxa,

um soneto pobríssimo eu trazia

 

só para teu controle e vistoria.

Mas logo se soltou o teu cavalo

para bem longe de mim e da poesia.

 

E se guardo teu riso enquanto falo

e me digo e desdigo em cada dia,

guarda republicana, em teu cavalo

 

trouxeste troça feita melodia.

 

Luís Filipe Castro Mendes, Um Novo Ulisses Regressa a Casa (2016)

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04
Jun 13

CORRESPONDÊNCIA SECRETA

2

 

À beira de um maior deslumbramento

duram-nos as palavras por tocar;

mas a voz recortada pelo vento

vem lembrar ao desejo um outro mar.

 

Se eu nunca desejasse e só tivesse

das palavras o fino limiar,

talvez a minha voz que te estremece

pudesse nestes versos sossegar.

 

À beira de um maior deslumbramento

quem nos fala dos corpos por tocar?

Quem fez deste silêncio chamamento,

de um ardor a promessa de outro mar?

 

Luís Filipe Castro Mendes

in Limiar #4, 1994

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05
Fev 12

A UMA CABRINHA VISTA EM BISSAU

Se estivesse aqui Matilde

eu dava-lhe esta cabrinha,

com o seu focinho humilde

e a altivez duma rainha.

 

Cabrinha de jeito bom

a fugir pelo telhado,

caladinha no seu tom

de sobrolho carregado.

 

Cabrinha como tu, filha,

estrela oculta nestes versos,

que perdura e que cintila

sobre céus e ares diversos.

 

Luís Filipe Castro Mendes

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23
Jan 12

NOITE NOS JARDINS DA GULBENKIAN

O limo, o lume, as áleas protegidas

e a noite que chega

sem nos perguntar.

 

E se o jardim, súbita melodia

nas áleas a perder-se, só memória,

fosse afinal complacência muda

e o nosso grito o lume que defende as áleas

do peso de ser noite?

 

Mas quem arrisca um grito,

da vida que nos coube?

 

Luís Filipe Castro Mendes

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02
Jun 11

O PARADOXO DO VIAJANTE

Penso nos lugares aonde não mais voltarei:
não para dizer que neles se encerrou
o que deles ou através deles eu poderia ter sido.
Apenas para lembrar
que nunca lhes poderei dizer adeus.

Luís Filipe Castro Mendes
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25
Out 10

A EUGÉNIO DE ANDRADE, DEPOIS DE LER OS LUGARES DO LUME

Entre os lugares do lume acontecia
que a tua voz as músicas movia

e era outra paisagem de repente
a levantar-se como sarça ardente,

como se os prisioneiros da linguagem
se tornassem só lume, só passagem

e na terra que foi melancolia
ardesse a voz inteira da poesia.

(Mas nos lugares do lume que disseste
um pur si muove brilha e aparece.)


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