06
Fev 17

O VELHO CASTELO -- OS ADEUSES DO POETA (Giorgio De Chirico)

Quando este silêncio

se instala e o caminho

parece tomado de

 

uma névoa intensa,

tão intensa que nos cega...

quando candeia alguma

 

se insinua... regresso

ao teu rosto, aos olhos

teus que tudo iluminam,

 

ao teu corpo, ao menino.

ao luar, aos anjos, às

palavras, inevitáveis

 

lugares deste encontro,

deste dédalo solar

que o jacto de sangue é.

 

Mário Avelar, Pelas Mãos de Mussorgsky numa Galeria com Anjos (2000)

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22
Mai 16

'PROMENADE' - SOL NUM QUARTO VAZIO (EDWARD HOPPER)

Às vezes sento-me na

sala a ouvir Coltrane,

my favorite things... O crepúsculo

 

da memória esbate-se

em ténues raios de

luz nos ecos desses dias:

 

Não vás ao mar, Tóin'... O tédio

dos sessenta, procissões,

indolentes romarias...

 

cheiro a fritos, farturas...

Nostalgia? Toca a

banda no coreto... Que

 

vontade de uivar, de 

correr, de fugir p'ra longe

desse imenso torpor.

 

Mário Avelar, Pela Mão de Mussorgski numa Galeria com Anjos (2000)

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09
Mai 16

ISMAELITAS

Quando penso nesse instante,

penso em corredores, veredas

e pátios iluminados

pelo luar,

algures conduzindo à

mansão de Fairfax. Ahab

partira enfim. O órfão

vogava sob o olhar atento

de Rachel.

 

O neófito subiu a escada

de mármore em silêncio,

como quem receia despertar

o louco, retirá-lo à

região das trevas e das

sombras funéreas, e

chamá-lo ao mundo dos vivos

para que prossiga a

eterna demanda. Ela

 

esperava-o no quarto

ao fundo, olhando o bosque

através da janela aberta.

Aproximou-.se, tocou-lhe os cabelos,

sentou-se na cama a

seu lado. Uma hora depois

ambos observam o bosque

iluminado

pelo luar.

 

Dois gatos negros abanam

lentamente a ponta do rabo.

E somente eu escapei

para vos contar.

 

Call me Ishmael.

 

Mário Avelar, Ciades de Refúgio (1991)

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21
Mai 11

Cidades de Refúgio

autor: Mário Avelar (Lisboa, 1956)
título: Cidades de Refúgio
colecção: «The Impossible Papers»
editora: Black Sun Editores
local: Lisboa
ano: 1991
págs.: 24
dimensões: 17x12,60,2 cm. (brochado)
capa: Baptism in Kansas, de John Stewart Curry (reprodução parcial)
impressão: Tipografia Freitas Brito, Lisboa
tiragem: 300
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27
Dez 10

MEDITAÇÃO 6.

Naum 2.4. Tinge-se de rubro o escudo dos seus valentes, seus guerreiros vestem-se de escarlate; o aço dos carros preparados parece fogo, e os cavalos empinam-se. O mercador e os sonhos

Mais correcto seria dizer pesadelos.
Todavia, ao despertar de madrugada,
outros ruídos emergem distantes: as
pancadas ritmadas de um velho relógio

de sala, o restolhar de pássaros numa
água-furtada, a sirene de uma
ambulância, ou um cão ladrando muito,
muito longe, ou vento agitando os

plátanos, ou vozes de crianças... ainda
vozes de crianças. Um insecto imenso
baila no cortinado em fusão com o

fumo, uma breve encenação da luz.
O fumo anula o revérbero mas
aquelas vozes soam mais perto do sangue.

Mário Avelar
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24
Dez 10

PROMENADE -- LUGAR CHEIO DE INSCRIÇÕES (PAUL KLEE)

Às vezes sento-me na
sala a ouvir Coltrane,
pursuance... as melodias

agitam o teu olhar,
afagam bem lá no fundo
as águas azuis tépidas

da lagoa. Nesse instante,
a natureza parece
ocultar uma ausência

de piedade, parece
dizer: é tão simples, tão
natural. Deixa fluir,

como o sangue, ou como
um corpo sensual, vivo,
quente... que, indiferente,

segue por entre a tribo
e, ainda quente, nela
se dissolve. Haja Deus!

Mário Avelar
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19
Dez 10

HERBA SANTA

Associo melodias às estações,
a instantes mais ou
menos vagos na memória. O
Verão de oitenta e cinco, por exemplo.

Regressara nesse tempo da pátria
dos heróis. Os dias fluiam entre
a viagem de um amor vindo
de longe e um almoço fora de horas
num qualquer snack em Lisboa, cracking.

Com liberdade, livros, flores e
a lua, quem não pode ser feliz?

Sim, havia ainda os livros e
a música, o frágil encanto de
Suzanne Vega.



Mário Avelar
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01
Ago 10

MIRAGENS

I fall, more and more,
Into my own silences.

Theodore Roethke

Os sessenta iam ainda
no início, sem memória
de guerras, revoluções
ou de fluxos migratórios.
A terra aguardava em
silêncio a chegada
das betoneiras, dos patos
bravos. Outras migrações...
Um domingo de manhã,
em Maio, saímos a
explorar lugares ocultos,
pequenas grutas e antas,
mais tarde ameaçadas
pelas aves de arribação.
Os tais patos... bravos, claro.
Olhámos o vale. O
meu pai segurava-me
a mão. À nossa frente o
sítio onde se ergueria,
dez anos depois, a casa.
Casa feita, pêga morta.
Um ditado apenas e
para mim um medo a pairar,
dia após dia, como
se alguma oculta verdade
ali se insinuasse.
Como se o povo tivesse
razão. Enfim, zombarias
do destino. Ou do acaso?
Lá para o fim da manhã,
descobri junto à anta
um minúsculo esqueleto
de plástico. Curiosa
ironia vinda de outras
brincadeiras, porventura
mais inocentes, das crianças
dos bairros de lata. O
esqueleto ainda o vi,
há alguns meses, no sótão,
entre molduras partidas,
velhas cartas sem destino
ou memória, e as
sempre inevitáveis teias
de aranha. Um pequeno
sinal como outros, uma
pedra um nome um sinal só
desses dias; um vestígio
da rua das oliveiras,
no tempo em que somente
elas e o casal de
velhos loucos ali viviam.

Mário Avelar
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