19
Mar 11

A VISTA

A vista é um ar, um intento,
a repassar a amplidão,
uma única extensão
sem dimensão nem assento.

É como rastro de estrela
que no ar se risca à flux
que por ser tira de luz
pesa menos que não sê-la.

Ou como coisa mais bela
que o seu peso vai perdendo
à medida que correndo
mais coisa ganha em perdê-la.

Ou puramente Existência,
que nada pode existir
ao de lá do meu sentir
que é toda a própria Existência.

Tudo o que existe coexiste,
porque o que existe em redor
é porque existe em redor
de qualquer coisa que existe.

Portanto nada existiu
nem nunca pôde existir
sem um centro coexistir
em volta do qual se viu.

As coisas não são por elas
são por ser excentricidade;
são, portanto, na verdade,
não elas, mas centro delas!
publicado por RAA às 16:44 | comentar | favorito
29
Jan 11

A DOR E O GOSTO

Tudo em volta é dor e pó,
tudo luto e tudo enfado,
tudo vestido de dó,
tudo só do mesmo lado!

Mas venha um truc doloroso
um traumatismo violento
que sacuda este tormento
em movimentos de gozo.

Quando a dor em lago existe
e a nossa vida cativa
do mesmo lago persiste,
não vale a pena ser esquiva,

Basta apenas um motivo
que movimente esse lago
e o movimento é afago
duma dor em que me vivo.

Duma dor em que me exalto
de soberba e de ternura,
onanística ventura
de pôr as chagas ao alto!

Saborear o que passa
na fieira dos seus dedos
é dominar os enredos
com que se faz a desgraça.

Ninguém fuja à sua dor,
que é fazer-se perseguido,
que é considerar indivíduo
o que era apenas... calor!

Mário Saa
publicado por RAA às 19:26 | comentar | favorito
23
Jan 11

VERSOS DE SABOR ESTRAGADO

Borbulhas pulhas cravavam
as carnes deste mancebo
que uma donzelas de cebo
de mui longe amamentavam.

Tinha pedaços de bocas,
seus olhos pedaços d'olhos,
que foram bocas e olhos
d'outros olhos, doutras bocas!

Álcool de noite e de dia,
mulheres podres dia e noite
espadanavam açoite
naquela carne vazia.

Caía a carne com sono
com tendênia a desmanchar-se
e com tendência a sentar-se
nos degraus do abandono.

Os degraus eram d'outono
caídos, baixos, pesados,
com silêncios vazados
em grande taças de sono!...

E se me ponho a cismar
na aventura do não-ser
meu estro vai fenecer
nos 'scombros d'Além do Ar!

...O fim da tarde era doce
de quebrança e de fadiga:
a boa vida inimiga
tornou-se amiga, isolou-se!

Mário Saa
publicado por RAA às 16:29 | comentar | ver comentários (2) | favorito
11
Dez 10

QUADRAS DA MINHA VIDA

Os ecos nos meus sentidos
Dos meus afectos doentes
São mais longos, mais compridos
Do que rastos de serpentes.

Nasci profundo e pegado
A turbilhões de aflição:
Na cara trago estampado
O meu perfil de obsessão.

Não creio que possa amar
Nem neste mundo ter jeito
De me encostar a outro leito
Sem desatar a chorar.

Enterro os dias e os ais,
Sou uma pilheira de mortos,
Não tenho espaço pra mais!
Que se comam uns aos outros...

Mário Saa
publicado por RAA às 23:56 | comentar | favorito