09
Dez 15

'ALL STRIPPED DOWN'

Cavalheiro idoso, calvo e sem jeito
para foder procura quem o ature
e acredite (às vezes) na ressurreição.

Nunca leu livros, cospe grosso
e ronca. Assunto sério: morrer com alguém.

 

Manuel de Freitas, O Coração de Sábado à Noite (2004)

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12
Fev 13

SUB ROSA

para o Herberto Helder

 

Não somos os últimos, pois se

há coisa que o mundo sempre fez bem

foi acabar. De novo e sempre: acabar.

 

Mas já não trabalhamos com o ouro

e temos um certo pudor tardio

em falar de deus, do amor ou até do corpo.

 

As metáforas arrefecem, talvez contrariadas.

São casas devolutas, mães risonhas

ou sombrias cujo grito deixámos de escutar.

 

Do lixo, porém, temos um vasto

e inútil conhecimento. Possa

ele servir de rosa triste aos

que não cantam sequer, por delicadeza.

 

Manuel de Freitas

(escolha de J. A. Oliveira, J. T. Mendonça e L. M. Queirós,

Resumo -- A Poesia em 2009

 

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16
Out 12

2009, PINA BAUSCH

«As eleições de domingo no Benfica

estão comprometidas; morreu

Pina Bausch, a coreógrafa alemã.» -- foi assim,

de rajada, numa frase única a colar-se

ao vidro do táxi, que fiquei a saber da sua morte.

 

E tive pena, recordei enquanto não pedia troco

a tristeza feliz de a ver dançarCafé Müller

há um ano, no tempo em que estávamos vivos.

 

Mas já não tenho poemas.

Nem mesmo para si, Pina Bausch.

 

Manuel de Freitas

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05
Abr 11

VAI E VEM

I

É de todos sabido que
o 100 tanto desce como sobe
-- e fiquemo-nos
pelo estreito declive que vai
da praça das Flores ao Príncipe Real.

Vi hoje um filme sobre isso
-- português, embora não muito suave,
e avesso, como pôde, aos brandos
costumes da morte. Detive-me, pouco
depois, sob a frondosa árvore da noite.
À espera, claro, de não ver ninguém.

Manuel de Freitas
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26
Mar 11

...

Pela manhã o gato estende-se
vagaroso neste impreciso lugar
em que luz e sombra
se entretecem. Nas pedras
rondantes do que sempre chamámos
a nossa casa, esse sonho
de irmos por detrás das janelas
encarcerados nas agrestes
paredes do amor.

Todas as manhãs, enquanto
a escola me espera, o
gato é tão certo como os passos
que dele se desviam. Um mero
olhar, a melancolia
de depois te dizer já sem o mesmo encanto
a sua negra quietude, o silêncio
em que se move.

Estamos todos, eu tu e o gato,
neste estranho sossego
de a morte ser um dia destes,
entre luz e sombra.

Manuel de Freitas
publicado por RAA às 15:55 | comentar | favorito
16
Mar 11

PRÓLOGO

O tempo, esse pequeno escultor,
prolongou-te os gestos
até à exaustão, ao limite do escárnio,
ao inoportuno reclame daquele
que vai morrer e não morre
e fala demasiado sobre o silêncio do seu grito.

Paciência. Não poderia ter sido de outra
maneira. Há uma infância parada,
onde o cadáver de deus
nada quer dizer. Sim, tem chovido muito.
Mas que saberá destas mesmas horas
o gato negro que a tua mão já não encontra?

Deténs-te, usas palavras vãs, despedes-te.
Sabes que foi sempre assim.

Manuel de Freitas
publicado por RAA às 23:58 | comentar | favorito
08
Mar 11

URINOL

As melhores horas da nossa vida,
as mais contentes, passámo-las
num urinol qualquer, vendo correr o mijo
capaz e fluente numa certeza de louça
branca, amarela ou cinzenta.
Instantes de pouca opressão,
cumprindo embora um estúpido dever,
desses do corpo, sob o silêncio infecto de Deus
-- que talvez fosse aquele puxador
de autoclismo que um dia me ficou na mão,
numa taberna discreta ao Poço dos Negros.
Guardei-o ainda alguns meses, mas de Deus
como de um autoclismo, de tudo
acabamos por nos cansar. Até de poemas.

São ruas velhas assim, onde paira
a suposição grosseira de um urinol
divino e sombrio, que nos fazem aceitar
esta voraz forma de extermínio. O nosso,
incandescente, num apogeu de melancólicas
retretes onde os insectos e bactérias do acaso
nos distraem o olhar
embaciado pelo abuso da lixívia.

Uma lucidez pegajosa, toldando a idade
das mãos invariavelmente senis.
Como se bastassem, ou fossem mesmo
excessivas, certas baixas certezas de cão,
desastres menores. Sabendo-se de fonte
segura que o mijo pode ser um poema.
Um poema cansado do que antes foi vinho,
a suicidar-se agora -- contente e tão triste --
no vazio evidente de uma louça
branca, amarela, sagrada.

Pequenas alegrias e no entanto as maiores,
essas mesmas que bastarão,
que terão de bastar
no dia
em que formos
morrer.

Manuel de Freitas
publicado por RAA às 23:57 | comentar | favorito
05
Mar 11

GAME OVER

O corpo.
Uma duração precisa,
que se despede informalmente
nos beijos que já não dá.
Ó meu bom Jesus de Braga,
eu não saberia como ficar,
remendando os dias
com o apressado amor das coisas.

Tudo finalmente finda.
Na calamidade das mãos,
um cigarro que arde impróprio
sobre as manhãs exaustas.
E ninguém me quis,
pelo menos.

De que vos falarei,
com palavras póstumas
onde o rancor se apaga?
Era uma vez


aquele jogo triste que não sei jogar.

Manuel de Freitas
publicado por RAA às 21:30 | comentar | favorito
13
Fev 11

CALÇADA DOS MESTRES

Três velhas e eu,
na última taberna de Campolide.
Falavam de ir "levantar" os maridos,
o que deles resta.
Mas não estão "capazes":
dois anos debaixo da terra
nem sempre é o bastante.
"O meu João era mais forte do que
o teu" -- trabalho de vermes,
apenas. Também "por esta altura
morreu o Joaquim Sapateiro",
recordam. Como se já só
da morte vivessem
(o que não foge demasiado
à verdade geral:
alimentos em preparação -- ou cinzas).

Há quem tenha estado
dez anos debaixo da terra,
antes de poder ser "levantado"
-- e há quem nunca tenha estado vivo,
acrescenta o autor destes versos,
condensando a tarde numa garrafa vazia.

Estão a perceber agora
por que é que eu gosto tanto
de tabernas?
(Não respondam; o poema termina aqui,
porque a Dona Joana tem de ir ao oculista.)

Manuel de Freitas 
publicado por RAA às 23:49 | comentar | ver comentários (3) | favorito
07
Fev 11

JUNGHÄNEL, 2000

Diferença nenhuma: «Christ lag
in Todes Banden». Ou
tão-só a certeza de não haver,
a esperar-nos, um pai abandonável,

mera carícia de pó
folheando o evangelho.

Manuel de Freitas
publicado por RAA às 19:48 | comentar | favorito