19
Dez 17

BOCAGE

Já não sou. Já não serei

se fui. Agora à cova

além dos ossos e caroços

muito mais descerá.

O verso, o riso, o vinho,

a mão ladina sobre a carne morna,

tantas coisas sentidas, ressentidas,

intenções, bolandas, entreactos,

entradas por saídas, choros finos:

muito mais descerá.

 

Não sou, é certo, e não serei,

mas no descer de tudo

já nem fui.

 

Pedro Tamen, Analogia e Dedos (2006

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31
Ago 17

NEFERTITI

Aqui estou presa em terracota.

Mas, tanto como dantes, deste lado

meus olhos adivinham o horizonte antigo

que então me iluminava.

 

É pequena esta casa para mim,

atravesso-lhe os muros e vejo em cada dia

renascer a verdade sobre o mundo.

 

Descem ao longe os barcos pelo rio

(esse que aqui não há)

mas há uma viagem, e ela é que me prende

a um barro sem fim.

 

Pedro Tamen, Analogia e Dedos (2006)

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02
Mar 15

NOÉ

Pronto, pronto, eu faço. Dá um trabalhão

mas faço. Corto madeira, arranjo pregos,

gasto o martelo. E o pior também:

correr o mundo a recolher os bichos, 

coisas de nada como formigas magras,

e os outros, os grandes, os que mordem

e rugem. E sei lá quanto são!

Em que assados me pões. Tu

gastaste seis dias, e eu nunca mais cabo.

Andar por esse mundo, a pé enxuto ainda,

a escolher os melhores, os de melhor saúde,

que o mundo que tu queres não há-de nascer torto.

Um por um, e por uma, é claro, é aos pares

-- o espaço que isso ocupa.

 

Mas não é ser carpinteiro,

não é ser caminheiro,

não é ser marinheiro o que mais me inquieta.

Nem é poder esquecer

a pulga, o ornitorrinco.

O que mais me inquieta, Senhor, 

é não ter a certeza,

ou mais ter a certeza de não valer a pena,

é partir já vencido para outro mundo igual.

 

Pedro Tamen, Analogia e Dedos

publicado por RAA às 08:44 | comentar | favorito (1)
01
Dez 10

MADAME BUTTERFLY, VELHA

Engano: não, não me matei,
suguei
a vida que outros deram.

Gueixa nasci e aqui estou de gueixa,
borboleta que fui, borboleta que sou,
mosca, ah, sim, mosca,
mas de manteiga.

E envelheço porque não morri.
Envelheço? Não pode envelhecer
quem sempre foi assim.
Dizem-me velha? Olhem-me as pinturas:
todos os dias chegam barcos,
barcos, marinheiros,
todos os dias chegam.

Pedro Tamen
publicado por RAA às 15:52 | comentar | favorito