09
Jun 11

SONETO

Eu tenho a pagar 10 e na carteira
Apenas tenho 8. Eis a arrelia.
Eis-me buscando em mente uma maneira
De pagar o que devo em demasia.

E fico às vezes nisto todo o dia,
Um dia inteirinho em estúpida canseira.
Se busco distrair-me, de vigia,
Olha-me a rir a dívida grosseira.

E entretanto na rua vão passando
Carros de luxo, altivos salpicando
O lodaçal dos trilhos sobre mim...

E sinto, na revolta, o algarismo,
Do trono do brutal capitalismo,
A rir de nós, os bobos do festim!

Rui de Noronha
publicado por RAA às 14:37 | comentar | favorito
25
Mai 11

À TARDE

Não sei o que há de indefinível, vago,
          Na morna luz da tarde,
Que nos envolve de um etéreo afago
          E como que nos arde.

De nós então parece que se evola
          Um fumo de ansiedade
Que tímido cantando ascende e rola
          Em busca da Verdade...

Rui de Noronha
publicado por RAA às 14:18 | comentar | favorito
16
Mai 11

MAVÍKIS

De manhãzinha, a mata ainda escura,
Ainda dormindo os colibris nos ninhos,
Partem cantando uma canção obscura,
Em variados grupos, ou sozinhos.

Segura a mão calosa a moca dura.
E eles a cantar pelos caminhos
Antigas tradições de ida bravura,
Canções obscenas, ritos de adivinhos...

Já fogem as estrelas derradeiras,
E acendem-se as grotescas maçaleiras
À luz do sol fecunda e abrasadora.

Já chegam à cidade, -- mas o canto,
Que os trouxe de tão longe, irá entanto
Suavizando a faina o dia fora...

Rui de Noronha
publicado por RAA às 12:40 | comentar | favorito
27
Abr 11

CARREGADORES

A pena que me dá ver essa gente
Com sacos sobre os ombros, carregadíssima!...
Às vezes é meio-dia, o sol tão quente,
E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!...

À porta dos monhés, humildemente,
Mal a manhã desponta a vir suavíssima,
Vestido rotas sacas, tristemente
Lá vão 'spreitando a carga pesadíssima...

Quantos, velhinhos já, avós talvez,
Dez vezes, vinte vezes, lés a lés
Num dia só percorrem a cidade!

Ó negros! Que penoso é viver
A vida inteira aos fardos de quem quer
E na velhice ao pão da caridade...

Rui de Noronha
publicado por RAA às 11:06 | comentar | favorito
11
Abr 11

NO CAIS

Há vibrações metálicas chispando
Nas sossegadas águas da baía.
Gaivotas brancas vão e vêm, bicando
Os peixes numa louca gritaria.

Escurece. Do largo vão chegando
As velas com a farta pescaria.
As bóias põem no mar um choro brando
De luzes a cantar em romaria.

E entretanto no cais as lidas crescem.
Arcos voltaicos súbito amanhecem,
A alumiar guindastes e traineiras...

E ouve-se então, mais forte, mais vibrante,
Os pretos a cantar, noite adiante,
Por entre a bulha e o pó das carvoeiras...

Rui de Noronha
publicado por RAA às 16:02 | comentar | favorito