Ouve, querida, na noite angustiada,
sem portas mas perfeita como um ovo,
como soa e ressoa a martelada
de cada passo do povo.
Ouve, na noite descarnada e enxuta,
o som que sobe, vertical e inteiro.
Ouve, querida, até às lágrimas, escuta
o oceano prisioneiro.
Noite implacável, arrepiada de vultos
como versos que mordem o papel
em que crianças, com gestos de adultos,
enchem de grãos de areia a nossa pele.
Noite aos quadrados, grades de gaiola,
cada quadrado fecha uma canção,
era aos quadrados no tempo da escola,
continua aos quadrados desde então.
Mas para lá dos barrancos, das ciladas,
para lá do engano e o desengano
cada pancada assobia madrugadas
cada pancada tem um som humano.
Compassados os passos, contra o vento,
escalam a noite descarnada e enxuta.
Viris, soam, ressoam no cimento,
ouve, querida, até às lágrimas, escuta.
Sidónio Muralha