09
Out 18

O ROUXINOL

Quando foge o Sol

e aparece o luar,

o rouxinol

começa a cantar.

 

A noite toda se encanta,

a noite fica encantada,

porque o rouxinol canta

para a sua namorada.

 

E a namorada, quieta,

ouve na noite que é bela

esse rouxinol-poeta,

esse rouxinol querido

 

que vai ser o marido

dela, só dela.

 

Sidónio Muralha, O Rouxinol e a Sua Namorada (1983)

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25
Jun 13

JOANINHA

A joaninha bonita
que mora a meio do caminho
da rua das violetas
tem um vestido de chita
todo ele encarnadinho
e cheio de bolinhas pretas.

E quando a gente lhe diz:
-- «Joaninha voa, voa,
não me digas que tens medo,
se voas serás feliz
que o teu pai está em Lisboa
foi lá comprar um brinquedo...»

A joaninha responde:
«Se és amigo verdadeiro
não me digas voa, voa,
-- voar sim, mas para onde? --
o meu pai não tem dinheiro
para ter ido a Lisboa...»

E a joaninha bonita
lá se fica no caminho
da rua das violetas
com um vestido de chita
todo ele encarnadinho
e cheio de bolinhas pretas...


Sidónio Muralha, 

Bichos, Bichinhos e Bicharocos

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14
Mar 13

ZÉ JEITOSO

Quando a noite cai, o Zé Jeitoso começa

uma história simples, uma história qualquer,

com palavras de embalar

para que o mar

adormeça,

-- o mar, diverso como um corpo de mulher.

 

Zé Jeitoso conta -- e os colegas a ouvi-lo,

sentados no chão, deitados no chão,

pensam que para contar aquilo

Zé Jeitoso traz o mar no coração...

 

Zé Jeitoso fala de longínquos portos,

de perrices fantásticas do mar,

e julga que os companheiros mortos

passeiam no céu, em noites de luar...

 

Zé Jeitoso fala... E nas palavras de embalar

os companheiros ficam presos...

O mar adormece... E, por cima do mar,

as estrelas parecem cachimbos acesos...

 

Sidónio Muralha,

Passagem de Nível

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06
Dez 12

DOIS POEMAS DA PRAIA DA AREIA BRANCA

1

 

Na Praia da Areia Branca

os búzios não falam só do mar:

-- falam das pragas, dos clamores,

da fome dos pescadores

e dos lenços tristes a acenar.

 

Búzios da Praia da Areia Branca:

-- um dia

haveis de falar

unicamente do mar.

 

 

2

 

No fundo do mar,

há barcos, tesoiros,

segredos por desvendar

e marinheiros que foram morenos ou loiros.

 

Ali, não são morenos nem loiros,

-- são formas breves, a descansar,

sem ambições para os tesoiros

e de cabelos verdes dos limos do mar.

 

Serenos, serenos, repousam os mortos,

 

-- enquanto o mar

ensina o mundo a falar

a mesma língua em todos os pontos.

 

Sidónio Muralha

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19
Jul 12

PRELÚDIO

A minha Poesia é uma árvore cheia de frutos

que um sol de tragédia amadurece;

mas eu não os arranco nem procuro:

-- o meu sol de tragédia aquece, aquece,

e o fruto cai de maduro.

 

No resto, sou empregado de escritório

que não procura desvendar abismos,

e passa o dia (glorioso ou inglório)

a somar algarismos...

 

A minha Poesia é uma árvore cheia de frutos

que um sol de tragédia amadurece;

 

mas eu não os arranco nem procuro:

-- sei a miséria da estrada percorrida;

o meu sol de tragédia aquece, aquece,

 

-- e o fruto cai de maduro

no chão da minha vida.

 

Sidónio Muralha

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17
Mar 12

Novo Cancioneiro

título: Novo Cancioneiro
prefácio, organização e notas: Alexandre Pinheiro Torres
edição integral: Terra, de Fernando Namora; Poemas, de Mário Dionísio; Sol de Agosto, de João José Cochofel; Aviso à Navegação, de Joaquim Namorado; Os Poemas de Álvaro Feijó; Planície, de Manuel da Fonseca; Turismo, de Carlos de Oliveira; Passagem de Nível, de Sidónio Muralha; Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro; Voz que Escuta, de Políbio Gomes dos Santos.
edição: Editorial caminho
local: Lisboa
ano: 1989 
págs.: 413
dimensões: 24x17,5x2,2 cm. (brochado)
impressão: Gráfica da Venda Seca
capa: Mário Caeiro sobre ilustração de Carlos Marques
tiragem: 3000
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03
Mar 12

O Rouxinol e a Sua Namorada

autor: Sidónio Muralha (Lisboa, 1920 -- Curitiba, 1980)
título: O Rouxinol e a Sua Namorada
colecção: «Pássaro Livre» #39
editora: Livros Horizonte
local: Lisboa
ano: 1983
págs.: 29
dimensões: 23x16x0,4 cm. (brochado)
capa: estudios Horizonte
ilustrações: Fernando Lemos
impressão: Altagráfica, Mafra
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25
Out 10

OS PASSOS NA NOITE

Ouve, querida, na noite angustiada,
sem portas mas perfeita como um ovo,
como soa e ressoa a martelada
de cada passo do povo.

Ouve, na noite descarnada e enxuta,
o som que sobe, vertical e inteiro.
Ouve, querida, até às lágrimas, escuta
o oceano prisioneiro.

Noite implacável, arrepiada de vultos
como versos que mordem o papel
em que crianças, com gestos de adultos,
enchem de grãos de areia a nossa pele.

Noite aos quadrados, grades de gaiola,
cada quadrado fecha uma canção,
era aos quadrados no tempo da escola,
continua aos quadrados desde então.

Mas para lá dos barrancos, das ciladas,
para lá do engano e o desengano
cada pancada assobia madrugadas
cada pancada tem um som humano.

Compassados os passos, contra o vento,
escalam a noite descarnada e enxuta.
Viris, soam, ressoam no cimento,
ouve, querida, até às lágrimas, escuta.

Sidónio Muralha
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19
Out 10

JARDIM DE INVERNO

Na noite violenta os homens fingem que passeiam
e os senhores olham do alto de uma torre de marfim
-- são os pássaros ou são as árvores que chilreiam? --
Deixem dormir os homens nos bancos de jardim.

Deixem dormir os homens sossegados,
enrolados no frio como se tivessem cobertores,
-- os jardins parecem lares civilizados
com tapetes verdes e com flores.

Desfilam os sonhos macios e amáveis
e no sono dos homens adormece o desespero.
Ninguém mais diz que os bancos são inconfortáveis,
o que seria exagero.

E é evidente que eles são exagerados
quando estampam no rosto o sofrimento,
hipócritas que de braços cruzados
dormem felizes ao relento.

Parecem procurar, quando passeiam,
quem tem culpa que o mundo seja assim,
-- são os pássaros ou são as árvores que chilreiam? --
Deixem dormir os homens nos bancos de jardim.

Sidónio Muralha
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13
Set 10

CÃOZINHO

Eu tenho um cão
muito pequenino
que me cabe na mão
e não é ladino...
Só se põe a correr
se o seu menino
lhe mexer...

Não come carne nem peixe
mesmo que o deixe...
Nem trinca chocolates e bolos
como os cães tolos...
Nem come sopinha
por mais que lha dê...

E não bebe leite
antes que se deite
na sua caminha...
E que coma açorda
ninguém se recorda...
Nem papa farinha...

E sabem porquê?
Ninguém adivinha?

-- é que o patetinha
é um cão de corda.

Sidónio Muralha
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