26
Nov 11

o princípio de m. c. escher (I)

prelúdio e figa sobre um tema popular

 

a)

 

lá sai uma, saem as duas

as três pombas do papel

saem do bico da pena

 

que nesta folha as escreve

e que as penas lhes alisa

sem acrescentar as minhas,

 

ganham força, ganham força,

e aos poucos se desenleiam,

já se equilibram, já voam,

descrevem uma parábola

dum branco intenso no azul,

vêm pousar no peitoril,

de patinhas saltitantes

pulam pra cima da mesa,

fazem dum livro degrau

e regressam ao papel,

entram na caligrafia

que as prende no seu cordel,

letra a letra, linha a linha,

outra vez palavras planas

que atravessam toda a página

pra voltarem a soltar-se

na chegada ao outro lado

e não há ponto final

 

Vasco Graça Moura

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21
Out 11

AUTO-RETRATO COM MUSA

3.

 

quem amo tem cabelos

castanhos e castanhos

os olhos, o nariz

direito, a boca doce.

em mais ninguém conheço

 

tal porte do pescoço

nem tão esguias mãos

com aro de safira,

nem tanta luz tão húmida

que sai do seu olhar,

 

nem riso tão contente,

contido e comovente,

nem tão discretos gestos,

nem corpo tão macio

quem amo tem feições

 

de uma beleza grave

e música na alma.

flutua nas volutas

de um madrigal antigo

em ondas de ternura.

 

é quando eu sinto a musa

pousando no meu ombro

sua cabeça. assim

me enredo horas a fio

e fico a magicar.

 

Vasco Graça Moura

 

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28
Ago 11

l'homme au verre de vin

numa sala do louvre dedicada à
pintura espanhola há um quadro
atribuído à escola portuguesa
de quatrocentos. é o

homem do copo de vinho, ou, dir-se-ia,
do copo de solidão; e é possível
que seja flamengo e triste. mas tomemos
a origem indicada como boa

para esse homem que vai entrar na noite,
gravemente na noite, como numa
parda natureza. eu nunca pude
obter um slide dessa imagem,

um bilhete postal, ou quaisquer dados
para situar aquela estranha placidez
de quem vai encontrar no vinho uma verdades, de
alguém que vou visitar de vez em quando,

para beber um copo em companhia.
é possível que fosse na flandres
algum feitor discreto e rico ou que em lisboa fosse
o português cultivado, melancólico,

segurando uma alcachofra minuciosa
que o pintor depois terá mudado
para tornar mais intenso o sentimento
ou mais real a sua digna sede.

Vasco Graça Moura
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14
Ago 11

recitativo VIII

quando, de duas casas contíguas, uma é demolida
e ficam na parede da outra os restos inegáveis
da primeira, rectângulos alinhados da
pintura de cada divisão e onde às vezes
se nota ainda a marca de uma estante
e se fica a saber que «ali houve uma casa», elemento
preciso de uma hierarquia de coisas e pessoas
administradas sob o estuque da teologia, quando
as águas e as luas parecem ter escorrido
com alguma dureza no pano da parede
e uma espécie de púbis alastra na pintura, sombriamente,
como um fumo muito velho, um fumo da razão
tocada pelo vento, e cresce mato
na base

Vasco Graça  Moura
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20
Out 10

recitativo VII

a necessidade
é a mãe de toda a cultura:

vi os do porto,
visível multidão de almas,
irados,
invadindo;

diziam a cidade
minguada de bom vereamento e o único
precisamente o único sítio que tinham
era onde cair mortos
e nem sequer dentro das casas: estas
têm quinze famílias diferentes
e pela sua
dilatada extensão se chamam ilhas

Vasco Graça Moura
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29
Jul 10

quizás, quizás, quizás

quando se está com gripe e nos dói toda a cara
o mal-estar só passa imaginando
que mozart uma vez encontrou nat king cole
e pôs-se a acompanhar
quizás, quizás, quizás

a voz de um era rouca na curva do bolero
e o piano gemendo em graves da mão esquerda
dava a sua resposta a siempre que me preguntas

e triste era o refrão,
quizás, quizás, quizás.

na música e na vida, algum desesperado,
mesmo sem estar com gripe ia perdendo o tempo,
sombrio, alcoolizado, pelas melancolias
da voz e do piano,
quizás, quizás, quizás.

nat king cole e mozart, depois de improvisarem,
fumaram um cigarro e foram-se trocando
trauteios, estranhezas, de
blues e de sonatas,
mas tudo fragmentário,
quizás, quizás, quizás.

se algum saxofone pegasse nesse tema,
juntando variações azuis e lancinantes,
podíamos ouvir um köchel qualquer coisa
be bop e dissonante, quizás, quizás, quizás.

e voltaria a voz em ritmos sacudidos,
no bar, na discoteca, nas sombras, nas entranhas.
nat king cole a cantar, mozart a acompanhá-lo,
ah, turvos corações,
quizás, quizás, quizás.

Vasco Graça Moura
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17
Jul 10

canção autobiográfica

aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio
da sua pata cúmplice, a solidão é uma
destreza atormentada; e o coração o incerto secretário
de agonia e desejo, variante da alma.
aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio.

canção, canção que nunca acabarias
de te escrever, vaivém das
tantas coisas.

Vasco Graça Moura
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24
Mai 09

princípio do prazer

à sua volta os pombos cor de lava
nos arabescos pretos do basalto
e gente, muita gente que passava
e se detinha a olhá-la em sobressalto

no seu olhar havia uma promessa
nos seus quadris dançava um desafio
num relance de barco mas sem pressa
que fosse ao sol-poente pelo rio

trazia nos cabelos um perfume
a derramar-se em praias de alabastro
e um brilho mais sombrio quase lume
de fogo-fátuo a coroar um mastro

seu porte altivo punha à vista o puro
princípio do prazer que caminhava
carnal e nobre e lúcido e seguro
com qualquer coisa de uma orquídea brava

e nas ruas da baixa pombalina
sua blusa encarnada era a bandeira
e o grito da revolta na retina
de quem fosse atrás dela a vida inteira.

Vasco Graça Moura
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